Entendendo um pouco sobre o islã - ou o islã paralisa as sociedades?
por João Marinho
É preciso olhar com mais afinco a história. Vejam, até antes do islã, o mundo árabe era essencialmente tribal, com tribos se matando entre si em uma disputa fratricida interminável, calcada na relação por meio da guerra e com assassinato de meninas, muito similar ao que vimos na China em tempos recentes. E estava muito aquém de seus vizinhos europeus e mesmo que algumas civilizações africanas mais antigas, além dos persas. A rigor, praticamente não havia o que pudéssemos chamar de civilização árabe. Pelo menos, não em termos de um crescimento estável, sustentável e florescimento técnico-científico e filosófico.
A chegada do islã possibilitou, pela primeira vez na história árabe, a formação de um Estado. Maomé se tornou um líder religioso, político e militar - e, embora para a época, tenha sufocado oposições, como de resto se fazia política naquele momento histórico -, fundou um Estado, deu o primeiro sentimento de organização política aos árabes e encerrou as guerras fratricidas, inserindo os árabes em um processo civilizatório incontestável, com foco no comércio, sistema jurídico (as escolas jurisprudenciais do islã), um corpo de leis (Shariah) e até mesmo uma sucessão de comando (os califas), ainda que, aqui e ali, houvessem disputas sangrentas de um califado para outro.
A expansão do islã e a assimilação da filosofia greco-romana posterior (a falsafah) levaram o mundo islâmico posteriormente a um florescimento técnico-científico que estava muito adiantado frente à Europa medieval, da astronomia à medicina, da matemática à filosofia. E até a política, em um sistema de votação que lembrava a hoje democracia. Surgiram as universidades e as madrassas.
Foi por mãos árabes - e islâmicas - que os europeus redescobriram a Antiguidade Clássica, o que possibilitou a vinda da Renascença. Então, o islã não "paralisou" essas sociedades. Essas sociedades só existem, em primeiro lugar, por causa do islã - assim como seu florescimento civilizatório prévio. Talvez com a notória exceção dos persas, que já tinham um florescimento civilizatório anterior e apenas se converteram.
O islã encerrou a matança de meninas, aumentou o direito das mulheres - na era medieval e até o início da Idade Moderna ocidental, as islâmicas gozavam de mais direitos que as europeias, inclusive o de divórcio - e acabou influenciando outros impérios que vieram depois e se converteram, como os mongóis.
Esse histórico é que torna mais difícil a penetração da ideia de laicismo no mundo árabe-islâmico. Porque, se a Europa já conhecia o Estado antes do cristianismo (Império Romano, Macedônios, Gregos, etc), no mundo árabe, o Estado só veio a existir por causa do islã. Como convencer o islâmico médio da separação entre religião e Estado, se um surgiu por causa da outra, em primeiro lugar?
Além disso, o Ocidente não foi muito "amiguinho" dos islâmicos. Entre os fins de século 19 e início do século 20, colonizaram a região e introduziram o laicismo e a modernidade europeia - que, então, tinha ultrapassado o islã, graças ao advento do Renascimento, depois o Iluminismo, as grandes navegações, etc. etc. - a fórceps, mediante força bruta, exploração e apoio a ditaduras laicas cruéis que prendiam e matavam os clérigos e procuravam proibir a livre manifestação religiosa e diminuir, também à força, a influência da cultura islâmica e estimular sua ocidentalização.
Acerta quem aposta que tudo isso resultou num caldo em que o fundamentalismo islâmico surgiu como opção política cada vez mais importante, pregando o ódio aos ocidentais e aos ateístas do Oeste (o que não era lá tão gratuito) e estimulando as vertentes radicais do islã como um reforço à identidade cultural diante da ocidentalização forçada. Pode parecer estranho, mas as mulheres usando os véus islâmicos hijab e niqab em 1979, durante a revolução de Khomeini que derrubou o antigo xá no Irã tinha um significado de libertação, de luta contra a opressão - não o contrário.
Ressalte-se, sobretudo, que o fundamentalismo bebeu em fontes de tradição islâmica para ter esse reforço. Historicamente, as revoluções no mundo islâmico são conservadoras, pela própria teologia muçulmana. Diferentemente do cristianismo, que prega, acima de tudo, um paraíso extraterreno e pós-morte, para o islâmico - embora ele também acredite no pós-morte -, os sinais de benesses divinas são sentidos no aqui e agora, na sociedade e na política. É o conceito de ummah, que é a completa comunidade muçulmana mundial.
A rigor, funciona assim: se a ummah vai bem e prospera, é sinal de que Alá está abençoando - e, nesse contexto, começa a haver flexibilização de costumes e certas tolerâncias. Se a ummah vai mal, é sinal de que Alá está descontente e punindo. A solução? Voltar ao "islã real", eliminar as flexibilizações e fazer a vontade de Alá. Resultado: toda revolução no mundo islâmico, diferentemente do mundo ocidental, tende a restaurar o conservadorismo - e não o contrário. E os fundamentalistas souberam usar isso, porque, já faz tempo, sobretudo com a submissão às potências europeias e depois aos EUA, que a ummah não vai muito bem...
Há um problema adicional: é que o fundamentalista é uma faca de dois gumes. Ao reforçar o radicalismo e pregar o ódio, ele, chegado ao poder, estimulou o terrorismo e tende a fechar o mundo islâmico à interação político-social, tecnológica e científica que poderia resultar em uma "ummah" mais moderna e mais ajustada ao século 21. Aí, sim, podemos falar de paralisação. Aí, sim, é o que vemos nas segundas fotos do Afeganistão e do Irã (vejam abaixo a imagem que me estimulou a escrever este artigo).
Como resolver isso? A solução não é fácil. O Ocidente tem sua própria agenda política - não podia ser diferente -, que não raro passa por dominações remodeladas, a ummah continua não indo muito bem, os jovens islâmicos, mais permeáveis às mudanças via redes sociais, internet e afins e também à pobreza e à falta de emprego, querem mais liberdade, o fundamentalismo continua forte e cooptando esse sentimento de insatisfação e o sentimento antiocidente que o Ocidente também estimulou. Existe inegável desrespeito aos direitos humanos via religião (gays, mulheres, etc.)... E aí vira esse caldeirão que estamos vendo, a Primavera Árabe já com cara de Outono e um mundo árabe-islâmico cada vez mais intolerante, mais homofóbico, mais machista e cada vez mais desbotado em relação ao brilhantismo medieval.
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