O
problema da “ex-homossexualidade”
por João Marinho
Pensei muito em voltar a escrever sobre o tema e em
começar fazendo uso de uma situação difícil que uma conhecida minha está
passando – mas não posso me furtar a apresentar a enganação que, baseadas em um
livro arcaico e em dogmas ultrapassados, tantas igrejas e tantos cristãos
insistem em defender: a ideia de que é possível ser “ex-gay”.
Este ano, publiquei, não sem um certo prazer, uma nota no site A Capa que
informava que a Exodus International, uma das maiores associações religiosas de
“ex-gays” do mundo, reconheceu que a reversão da orientação sexual não é
possível e que, nesse sentido, a homossexualidade é uma “cruz” que cabe ao “ex-gay”
carregar e contra a qual lutar ao longo de sua vida, no projeto de viver de
acordo “com a vontade de Deus”, quer seja: casando-se e tendo mulher e filhos.
Não é o ideal, mas é um passo na direção mais sábia.
Muitos aqui sabem que eu já fui um gay evangélico –
já tentei a via da oração por muitos anos, já fui um adolescente deprimido e em
crise por causa disso. Também já tive amigos que tentaram outras vias mais “concretas”,
até mesmo se internando em fazendas evangélicas que praticavam verdadeiras
atrocidades psicológicas. Outros entraram em “grupos de aconselhamento” e
outros ainda tentaram a via do exorcismo.
Graças a Deus (olhem a ironia), eu me livrei de
tudo isso, nunca cheguei a esses extremos e, liberto, hoje sou feliz com minha
sexualidade – mas de todos os que vi se declararem “ex-gays”, sempre foi essa a
minha percepção. Na verdade, eles nunca deixavam de ser gays, ou seja, de
sentir atração por homens. Recorrendo a expedientes de repressão psicológica ou
de matriz religiosa, deixavam de praticar o sexo com os homens e, em nome de
suas convicções, seguiam uma vida de comportamento heterossexual, tendo, porém,
de se policiarem contra o sexo gay como um alcoólatra em tratamento: “não se pode
dar o primeiro gole”.
A questão que se impõe é... Se um alcoólatra que não bebe mais pode ser chamado
de “ex-alcoólatra”, por que um gay que não transa mais com homens não pode ser
chamado de “ex-gay”? Em que pese o fato de que já vi alcoólatras dizendo que
não existe “ex-alcoólatra” – você sempre será um, ou seja, terá aquele problema
com o álcool, o que muda é se está sóbrio e abstêmio ou não –, eu responderia
que a questão é de conceito.
Por má informação, ou má-fé, boa parte da população
não compreende que o conceito de orientação sexual está ligado ao desejo,
tomado em sua acepção ampla e ao longo da vida. Orientação tem esse nome porque
indica a quem o desejo sexual, incluindo sua face afetiva, está orientado,
dirigido, direcionado, e é isso que define se a pessoa é hétero, homo, bi ou
pan, não o sexo da pessoa que está ao lado na cama.
Em suma, como costumo explicar, eu faço sexo com
homens porque sou gay – não sou gay porque faço sexo com homens. Da mesma
forma, um homem hétero faz sexo com mulheres por ser homem hétero, de antemão –
não é pelo fato de praticar essa modalidade de sexo que ele se torna hétero.
O ato sexual-genital é, portanto, o resultado possível e provável da orientação sexual, não sua causa: o desejo antecede o
ato. Tendo isso em vista, se o desejo da pessoa está orientado para o mesmo
sexo, ela é homossexual, ou gay – independentemente de concretizar esse desejo
mediante relações sexuais ou não. Gays (como héteros, bis e pans), portanto,
podem ser celibatários, abstêmios e até mesmo se relacionarem com pessoa de
sexo diverso. Também podem ser virgens – e isso é relevante, porque, se o que
definisse a orientação sexual fosse o ato, e não o desejo, qualquer pessoa que
ainda não tivesse transado não seria “nada”, não teria orientação sexual, o que
é efetivamente um absurdo.
Trazendo isso para o que estamos discutindo aqui,
então, o “ex-gay” não é “ex-“ porque o desejo pelo mesmo sexo fatalmente estará
ainda, ou sempre, como admitiu a Exodus, presente. Não é por ter uma mulher e
filhos com ela que, por isso, ele deixou de ser gay: basta apenas que o desejo pelo
mesmo sexo esteja lá, como parte integrante da personalidade – e a verdade nua
é crua é que, se você tem de lutar continuamente para não ceder a uma
determinada vontade, ou para reprimi-la, a lógica impõe a realidade de que essa
vontade existe, em primeiro lugar.
A descoberta de que essa “vontade” está lá não
costuma ser um processo fácil, mesmo para aqueles que não são religiosos.
Vivemos em uma sociedade homofóbica, em que destoar do padrão “homem com mulher”
equivale a sofrer pressões e repreensões, enfrentar preconceitos – inclusive os
nossos próprios – e até mesmo atos de violência. Diante disso, não chega a ser
inesperado que o gay que recentemente se descobriu assim anseie “por se tornar
hétero”, porque, afinal, quem quer passar por sofrimentos?
A constatação dessa realidade faz com que muitos na igreja, e fora dela, acreditem
assim que possibilitar “tratamentos”, espirituais ou não, para permitir à
pessoa alcançar essa meta é uma demonstração de caridade e piedade humana – e,
alguns, nutridos desse ideal de compaixão, chegam a apoiar teses como a do
recente projeto de Decreto Legislativo que quer derrubar a proibição de
psicólogos oferecerem tratamentos objetivando a “cura da homossexualidade”, em
discussão no Congresso.
Existem, porém, outras três verdades nuas e cruas.
Uma delas é que a ciência – que deve pautar a ação do psicólogo enquanto
profissional – já tentou a via da “cura”, sem sucesso, conforme demonstram
bastantes evidências, que se acumulam de décadas atrás até hoje. A segunda é
que esses tratamentos, e incluo aqui os espirituais, costumam mais piorar do
que melhorar a psique das pessoas. Reprimir um desejo legítimo não acontece sem
se pagar um preço – e não é difícil imaginar quão pode ser difícil e tensa uma
vida em que o policiamento contra uma força tão legítima e primária é a regra.
A terceira verdade nua e crua é que basta arranhar
a superfície para saber que não é a homossexualidade o problema, mas a
homofobia: se a sociedade facilitasse a vida dos gays, em vez de os recriminar,
se os pais deixassem o amor por seus filhos falarem mais alto, quem negaria que,
em vez de tentarem “virar héteros”, tantos gays
não tentariam viver uma vida plena e harmônica com sua sexualidade, sem
sofrerem perseguição por causa disso?
No entanto, quero aqui falar do segundo ponto, o
preço por viver uma vida reprimindo um desejo. Para isso, vou retomar o primeiro parágrafo:
por que é uma enganação que as igrejas e os cristãos defendam que é possível
ser “ex-gay”? Porque, além de ser, no mínimo, questionável falar em “ex-“,
diante dos conceitos esclarecidos até aqui, muitas vezes, esses mesmos cristãos
e suas igrejas não sabem, e nem mesmo fazem questão de saber, do preço que
pagam essas pessoas.
A história de uma conhecida minha, que me motivou a escrever este artigo, não
será revelada em detalhes, a fim de manter intacta sua privacidade e seu
sofrimento. Basta saber que, depois de ter se casado e ver sua vida sexual com
o marido com quem tivera filhos decrescer em qualidade por um certo período de
tempo, pelo qual ela culpava a si mesma, descobriu que seu marido a traiu com
outro rapaz. Os personagens são evangélicos.
Não se pode negar o sofrimento por que ela passou e
tem passado, embora tenha tido a grandeza de enxergar nisso uma libertação: não
era “culpa” dela, afinal – e, aqui, a tendência dos moralistas de plantão é
enxergar no ex-marido um pulha, que não soube honrar o casamento e destruiu a
família com as próprias mãos.
Uma análise mais aprofundada, no entanto, mostra que essa é uma situação em que
não existem verdadeiros vilões. Criado em uma família evangélica e extremamente
conservadora, o marido – de quem sempre desconfiei graças a meu “gaydar” –,
certamente não teve uma vida mais fácil, ainda mais diante dos olhos de quem,
como eu, descobriu na própria carne como é difícil se perceber gay e ser
evangélico.
Como terá sido a vida desse moço, obrigado a recusar
a si mesmo o benefício de procurar uma vida mais completa condizente com seu
desejo, em nome de estar fazendo o que “Deus queria”? E como deve estar sendo
essa situação, ao ter percebido que, pelo fato de o desejo, por tanto tempo
reprimido, ter cobrado a fatura que ele não conseguiu pagar, ter magoado tantas
pessoas ao mesmo tempo, inclusive a mulher que certamente amou (sim, porque há
muitos casos de gays que foram casados com mulheres que efetivamente amaram
suas esposas, até por existir, nos ensinam os gregos, mais de um tipo de amor)?
Agora, não haverá ninguém, especialmente em sua
igreja, para ver seu lado e apoiá-lo. Desprezado por todos, culpando a si
próprio e sozinho, ele ainda poderá enfrentar a ira evangélica e da família, se
descobrirem a realidade dos fatos, por ter cedido aos “desejos de Satanás”, quando
Satã não tem nada a ver com a história. O que há aqui, para quem, como eu, já
está mais do que escolado, são seres humanos às voltas com suas escolhas,
algumas delas indevidas frente ao desejo e sua própria natureza, e uma religião
patentemente insensível a essas demandas, que prefere o sofrimento calado de um
homem para manter as aparências e dogmas do que propiciar a esse ser humano uma
alternativa de harmonizar sua sexualidade e seu sentimento religioso. Será que
ele é mesmo o pulha?
Na minha concepção, se minha conhecida poderá se recuperar com certa velocidade
do baque – quem sabe, encontrando outro homem que a faça feliz e a deseje
sexualmente de verdade –, a situação do marido é bem mais complicada, e, se ele
não tiver ajuda para se libertar dos dogmas religiosos, pode piorá-la,
envolvendo-se em “tratamentos”. Quem sabe, caindo em intensa depressão, não
tente uma alternativa ainda mais “concreta”, que poderia atender pelo nome de
drogas ou suicídio...
Essa verdade nua e crua e feia é só uma das que se
escondem por trás das histórias dos “ex-gays”, mas, convenientemente, muitos
pastores e suas igrejas fazem questão de não abordá-la em seus cultos
evangelísticos transmitidos nas televisões de concessão pública. Quem conhece esse lado somos nós, outros gays,
que pouco temos voz, e estamos igualmente sozinhos, procurando ajudar aqueles
que passaram por martírios que, às vezes, nós também já experimentamos.
Certamente, o marido será apresentado como um “falso
crente”, quando a única coisa falsa aqui é o dogma religioso e sua promessa de “ex-homossexualidade”,
ou ainda, a falsa promessa de que a felicidade real só se encontra em um
casamento hétero, “de acordo com a vontade de Deus”.
A história que acabo de relatar me fez lembrar de
outra, talvez o primeiro caso de “ex-gay” com quem tive contato, quando eu
contava com cerca de 18 anos. Francisco era o nome dele, gay efeminado que
costumava ir a certa praça em minha cidade “caçar”, como eu à época, companhias
masculinas.
Soube por amigos em comum que Francisco se
convertera à CONGREGAÇÃO CRISTÃ NO BRASIL e, após se submeter a “aconselhamentos”
e sessões que beiravam o exorcismo, estava noivo de uma mulher da igreja.
Tentei argumentar com ele, mas diante de sua convicção inabalável, não me
restou alternativa a não ser me resignar – apenas para, cerca de nove meses
depois, reencontrar Francisco, já casado, novamente procurando companhias
masculinas no mesmo lugar.
Uma conversa foi bastante reveladora. Deprimido,
ele argumentou ter tentado de tudo, sem sucesso, e que “esse negócio de cura
não existia”. “Pois é”, respondi eu, “mas agora você envolveu outra pessoa, que
está em casa te esperando. Como é que fica?”. “Como é que fica”, pergunto eu,
se, numa dessas, ele sofresse uma violência, ou se, tomado de intenso e cego
desejo, descuidasse de sua proteção e pegasse algo e o transmitisse à mulher?
Novamente, veríamos o Francisco como o vilão, que
enganou a todos... Mas será que não foi ele o enganado? E será que não foram os
fiéis da igreja os enganados? Quem duvida de que Francisco foi apresentado como
um caso de “restauração pelo poder de Deus”, por “ter sido gay” e agora estar
casado? Talvez ele fizesse até uma ponta no programa de Silas Malafaia – e, no
entanto, novamente, somos nós, outros gays, que temos de lidar com esse lado
escuro e feio do que as igrejas gostam de mostrar em seus shows evangélicos.
Francisco e o ex-marido de minha conhecida não eram e não são pessoas de má
índole, como certamente não o são suas mulheres. Podem ter “errado”, se considerarmos
“erro” a “traição” sem levar em conta seus motivos – operação esta que eu,
particularmente, considero o verdadeiro erro –, mas eram humanos devotos,
convictos da ação do evangelho em suas vidas e de seguirem o desejo de Deus.
Só nos resta perguntar que Deus é esse, que deseja
e prefere a mentira em vez da verdade, a aparência em vez da harmonia, a
traição em vez da cumplicidade, o dogma em vez da felicidade, o sofrimento em
vez da plenitude, como se a homossexualidade fosse um erro, em vez de uma via
possível para se estar bem consigo mesmo... Um Deus que prefere ver um “ex-gay”
sofredor e em uma luta inglória a um gay feliz, arrastando junto ao primeiro
uma família inteira. Se é esse o Deus que a igreja acredita, lamento: o meu não
é assim – e ainda me perguntam por que eu decidi abandonar os templos, enquanto
outros querem restaurar a “cura gay” psicológica via canetada no Congresso...
Que blog interessante, descobri por acaso e estou seguindo.
ResponderExcluirComo eu queria me libertar dessa "cruz"
ResponderExcluireu tbm to tentando mas...sei lá se consigo
ExcluirComo eu queria me libertar de tudo isso... :'(
ResponderExcluireu ja luto ha quase 15 anos dentro de igrejas evangelicas e ja fiz de tudo pra deixar de ser gay e nao consegui, to chegando a conclusao que nao tem e e melhor viver feliz que um religioso infeliz
ResponderExcluirJá passei por isso e sendo sincero ainda isso me pertuba um pouco, mas posso com certeza afirmar de que depois que em aceitei a compartilhei isso com algumas pessoas eu fiquei bem mais feliz. No começo foi uma conformação com o que eu era, depois fui ficando melhor. Tudo que li nessa postagem desse blog eu já havia pensado. Mas está ai para acordar uns gays que acreditam que ainda existe a cura gay.
ResponderExcluirA verdadeira libertação está em você se aceitar como você é e viver sua vida.
É muito fácil, pai, mãe, conhecidos te julgarem porque eles não estão na sua pele.
JESUS TE AMA COMO VOCÊ É.
Abraços!!
Muito boa essa postagem! Espero que sirva para acordar alguns gays.
ResponderExcluirEu já havia pensando nos dois casos que foram postos aqui nesse exemplo. Ai pergunto: é justo envolver uma outra pessoa (a mulher) nessa questão só para você fazer o que é "certo"?
A verdadeira libertação está em você mesmo. Não direi que é fácil. Primeiramente você deve se conformar com o que você é. Depois disso passe a ver o lado bom de ser gay.
Com o tempo as coisas vão ficando mais claras e melhoram.
Lembre-se JESUS TE AMA. Abraços!!
Como eu sofro com tudo isso! Eu sei que Deus existe..ele fez e ainda faz grandes coisas na minha vida...mais essas igrejas, seus dogmas e seus egoismos muitas vezes acabam nos afastando e fazendo com que deixemos de seguir a Deus!! Ele ama muito todos nós gays mas as palavras ofensivas de muitas pessoas acaba fazendo com que esqueçamos disso!! Muito bom esse blog
ResponderExcluirDeus não condena a homossexualidade, Deus NÃO condenará nenhum homossexual ao inferno por causa da homossexualidade, Deus te ama incondicionalmente e te aceita do jeito que você é pois Ele mesmo te fez assim,Deus te ama tanto, mas tanto e te aceita, Deus está de braços abertos te esperando busca-lo de todo seu coração, busque na internet no site homofobia basta e veja as postagens ser cristão e homossexual partes 1, 2 e 3, Teologia Inclusiva e sabia mais sobre como a Bíblia não condena a homossexualidade, você pode procurar também aqui a Teologia Inclusiva, Jesus Cristo te ama incondicionalmente e te aceita do jeito que você é, Deus não quer que vocÊ que é homossexual tente ser heterossexual, isso que tem nas igrejas são pessoas que não estão representando bem a Deus, o homem te rejeitou, mas Deus te aceita do jeito que você é e se você busca-lo de todo seu coração você o encontrará. Você também pode acessar o site jovens gays cristãos e pode também procurar Igrejas Inclusivas.
ResponderExcluirOlá, posso dizer por experiência própria que "cura gay" está na cabeça dos outros, pq é fácil decidir pelo outro!
ResponderExcluirFui casado por mais de 10 anos, filhos, cristão, temente a Deus, mas q tinha meus desejos e os reprimia, afinal de contas É ERRADO/PECADO mas depois de um certo tempo de casado voltei a envolver-me com homens (preferindo os tbm casados, pra q nada fosse revelado), parava, voltava, sobrava o sentimento de culpa é sofrimento, afinal minha mulher linda não merecia... Até q um dia eu pensei: "não posso mais viver assim e já q não consigo, melhor separar-me!"
Confesso q foi uma difícil decisão, ainda mais depois de ter filhos, revelar a esposa tão decepção, sofrimento causado,mas hj vejo que foi a melhor coisa pra ela, q encontra-se num outro relacionamento e eu já não vivo mais com a culpa, estou feliz e com um relacionamento sério!
A verdade dói, mas restaura!