Enredo se passa em 1938, ano em que o autor nasceu
Jô Soares gosta de mandar no fim de seus programas de entrevistas “um beijo do gordo”. Num mundo que não gosta de gordos — que são quase considerados culpados de um crime que não cometeram ou de um defeito moral hediondo —, o humorista decidiu matar muitas obesas. A maior vingança é que As esganadas é muito divertido. Quarto romance policial do autor, ele mantém com os anteriores a ambientação histórica e geográfica no Rio de Janeiro de outros tempos. Desta vez, a trama se passa em 1938 — ano em que José Eugênio Soares, o Jô, nasceu.
O romance policial se tornou, de uns tempos para cá, uma espécie cult de literatura de entretenimento. Depois de vencer a barreira de classe e de gosto, vem sendo exercido por gente sofisticada, até psicanalistas e linguistas, como exemplo de uma certa visão meio cética, meio cínica da sociedadecontemporânea. Em outros termos, a narrativa policial se tornou ela mesma um álibi para quem jura que sabe o que é ser popular, mesmo que só conheça o povo a distância segura. Nesse caminho, Jô tem a vantagem de vir do cenário pop da televisão e do humor. Na verdade, seu empenho tem sido o inverso dos seus colegas de literatura: ele sempre quis mostrar que é chique, mesmo sendo humorista de tevê.
As esganadas inverte o rumo habitual das novelas de detetives. Logo no começo, o leitor fica sabendo quem é o assassino. A graça está nos detalhes da caçada ao facínora. Mais uma vez (como nos outros romances do autor), trata-se de assassinato em série. Agora, as vítimas são obesas gulosas, que morrem pela boca. O assassino é um tipo macilento e magro, papa-defuntos de profissão, que tem o sugestivo nome de Caronte (o barqueiro mitológico que leva as almas ao mundo do mortos), que herda do pai a funerária Estige (nome do rio em que Caronte remava sua canoa).
Caronte foi criado por uma mãe dominadora, que infernizava a vida do pai e seguiu com o mesmo propósito com o filho. O pai suicidou-se, o filho a mata. Ela não queria que ele comesse muito e não o deixou estudar música, sua paixão. A vingança, com suas motivações psicanalíticas, levou Caronte a planejar a morte de todas as mulheres gordas e lindas (como a mãe) que cruzassem seu caminho. Ele atrai as obesas com a sedução de doces portugueses. E vem de Portugal o detetive Tobias Esteves (o “Esteves sem metafísica” do poema Tabacaria, de Fernando Pessoa), que oferece seus talentos dedutivos ao delegado Mello Noronha, encarregado do caso.
Uma das graças da novela é a utilização de personagens, fatos e curiosidades da época. A começar pelo clima político do Estado Novo, com a sombra de Filinto Müller a cobrar resultado da investigação (muitas gordas esganadas são de famílias importantes), enquanto a inclinação nazista vai se desenhando na ditadura Vargas. Além disso, o relato é pontuado por noticiários de rádio com seus reclames; por eventos esportivos, da Copa do Mundo de 38 na França a corridas de carro no Circuito Gávea, com participação de Chico Landi e do cineasta português Manoel de Oliveira; e pela geografia das ruas do Rio de Janeiro, com destaque para as confeitarias.
O time encarregado de decifrar o mistério (além de Mello Noronha e Esteves é completado pelo medroso e prático Valdir Calixto, mistura de Sancho e Watson em seu certeiro e constrangido bom senso) ganha a contribuição de uma bela repórter e fotógrafa, Diana, que trabalha para as revistas de Chatô, que não tem pudor em usar seu charme como ferramenta profissional. O quadro social das vítimas também vai ser distendido com a incorporação de uma prostituta polaca. E, como não podia deixar de ser, há um personagem anão, desta vez um cantor de óperas de uma companhia alemã (Jô sempre dá um jeito de pôr um anão na trama).
Charutos e formol
As tramas policiais de Jô Soares são repletas de erudição. Além dos charutos (uma homenagem ao mestre Rubem Fonseca, outro partidário do exibicionismo finório em narrativas policiais), o leitor fica sabendo sobre técnicas de embalsamamento, ganha lições de pintura e música, recebe informações sobre a relação do bruxo inglês Aleister Crowley com o poeta Fernando Pessoa, além de muita cultura de almanaque: ópera wagneriana, lobotomia e fórmulas herbais de emagrecimento. E ainda topa com o latinório de algibeira recitado pelo detetive português, que é formado em psicologia e filosofia. Para habitar esse universo real e fantástico, o autor mescla personagens de ficção com gente de verdade, nem sempre desempenhando papéis históricos.
As esganadas é um romance que, mesmo com tanta violência descrita de forma clínica, foi feito para divertir. Segue o mesmo plano dos primeiros livros de Jô, que foram sucesso de público. A crítica, como se trata de um homem poderoso no mercado da vaidade e da mídia, preferiu sempre andar de lado. A editora informa que a primeira edição sai com 80 mil exemplares, uma marca gorda demais para o mercado brasileiro. É sinal de que a diversão anda em alta, o que é bom. E o livro, com sua engenhosidade, cumpre o que promete.
Não é grande literatura, mas, pelo menos, desde o começo, não engana ninguém. Jô, escritor, acaba sendo muito mais engraçado e simpático que o entrevistador das madrugadas, que virou um personagem de si mesmo, muito ciente de sua imagem. Como diria Fernando Pessoa, personagem do livro: o bom poeta precisa ser um fingidor.
O time encarregado de decifrar o mistério (além de Mello Noronha e Esteves é completado pelo medroso e prático Valdir Calixto, mistura de Sancho e Watson em seu certeiro e constrangido bom senso) ganha a contribuição de uma bela repórter e fotógrafa, Diana, que trabalha para as revistas de Chatô, que não tem pudor em usar seu charme como ferramenta profissional. O quadro social das vítimas também vai ser distendido com a incorporação de uma prostituta polaca. E, como não podia deixar de ser, há um personagem anão, desta vez um cantor de óperas de uma companhia alemã (Jô sempre dá um jeito de pôr um anão na trama).
Charutos e formol
As tramas policiais de Jô Soares são repletas de erudição. Além dos charutos (uma homenagem ao mestre Rubem Fonseca, outro partidário do exibicionismo finório em narrativas policiais), o leitor fica sabendo sobre técnicas de embalsamamento, ganha lições de pintura e música, recebe informações sobre a relação do bruxo inglês Aleister Crowley com o poeta Fernando Pessoa, além de muita cultura de almanaque: ópera wagneriana, lobotomia e fórmulas herbais de emagrecimento. E ainda topa com o latinório de algibeira recitado pelo detetive português, que é formado em psicologia e filosofia. Para habitar esse universo real e fantástico, o autor mescla personagens de ficção com gente de verdade, nem sempre desempenhando papéis históricos.
As esganadas é um romance que, mesmo com tanta violência descrita de forma clínica, foi feito para divertir. Segue o mesmo plano dos primeiros livros de Jô, que foram sucesso de público. A crítica, como se trata de um homem poderoso no mercado da vaidade e da mídia, preferiu sempre andar de lado. A editora informa que a primeira edição sai com 80 mil exemplares, uma marca gorda demais para o mercado brasileiro. É sinal de que a diversão anda em alta, o que é bom. E o livro, com sua engenhosidade, cumpre o que promete.
Não é grande literatura, mas, pelo menos, desde o começo, não engana ninguém. Jô, escritor, acaba sendo muito mais engraçado e simpático que o entrevistador das madrugadas, que virou um personagem de si mesmo, muito ciente de sua imagem. Como diria Fernando Pessoa, personagem do livro: o bom poeta precisa ser um fingidor.
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