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quarta-feira, 1 de abril de 2015

Homofóbico não é gay enrustido




por João Marinho

Leio esta notícia e, para meu (não tão grande) espanto, vejo muita gente, inclusive gays e inclusive simpatizantes, regurgitando aquele discurso de "tá vendo? Todo homofóbico, no fundo, é gay enrustido".

Será?

Esse discurso de que "se é homofóbico é porque é gay e não se aceita" é bem perigoso, porque joga nas costas dos gays não apenas o fato de serem vítimas da homofobia, mas também de serem seus agentes.

Quer dizer, então, que se você é gay e é agredido por um jovem com uma lâmpada na avenida, é porque aquele jovem é gay também (e não se aceita)?

Quer dizer que se você beija seu namorado e é severamente agredido por quinze  membros de uma torcida organizada no metrô, esses 15 são gays também (e não se aceitam)?

Quer dizer que se você é um adolescente e morre pisoteado por outros adolescentes que praticam bullying porque você tem pais adotivos gays, é porque esses adolescentes agressores são gays também (e não se aceitam)?

Quer dizer que se você é um pai e beija seu filho para, em seguida, ter a orelha decepada por serem ambos confundidos com um casal gay, é porque os que a deceparam eram gays também (e não se aceitavam)?

Quer dizer que quando um pai e uma mãe evangélicos expulsam o filho gay de casa é porque esse pai e essa mãe são gays (e não se aceitam)?

Menos, por favor. Isso está incorreto.

A nossa sociedade, inteira, é que é homofóbica. A família, a escola, a religião, o Estado, as convenções sociais, os papéis de gênero, até as leis... Tudo é tradicionalmente construído de forma a se voltar contra a homossexualidade ou dizer que ela é indesejável.

Ora, é fácil ser homofóbico: basta seguir a maré. Difícil é não ser homofóbico, porque exige pensamento crítico, exige respeitar o outro em sua alteridade, questionar e repensar tudo que é ensinado desde a infância – e o curioso é que isso, essa dificuldade, pode ser assim mesmo para um gay.

Em suma, homofobia não tem nada a ver com enrustimento, com "não se aceitar". Poucas pessoas "nascem fora do armário" – e, se houvesse essa relação, então, praticamente todo gay, por convenção, seria homofóbico, porque esteve no armário algum dia e fatalmente passou por problemas de autoaceitação, pelos motivos que acabei de elencar.

Não, meus caros.

Homofobia tem a ver com cultura, porque esta é que aponta que a homossexualidade é indesejável – e, assim sendo, existem tanto homofóbicos gays quanto homofóbicos héteros. No entanto, sendo os héteros a maioria da sociedade, são também a maioria dos homofóbicos... Ou vamos defender e acreditar que "por estarem bem-resolvidos com o fato de gostarem do sexo oposto", só por isso, não têm preconceito algum e são todos anjinhos de candura?

Ao contrário do que diz esse discurso, a ciência não esposa isso, não. A psicanálise não esposa isso, não. Quem esposa essa ideia é o senso comum – e de forma bem acrítica, aliás.

Portanto, cuidado... Porque, na ânsia de apontar o dedo para o homofóbico proferindo esse discurso, você está, na verdade, retroalimentando a própria homofobia... Ou vai dizer que já ouviu ser comum casos de assassinos de gays que se uniram em matrimônio?

Isso sem falar do gosto amargo de, como todo homofóbico, apontar, nesse processo, a homossexualidade como um defeito, como uma anátema no outro. Ela nunca é. Mesmo que, infelizmente, seja parte da psique de dois assassinos.

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Edir Macedo e o desrespeito aos judeus



por João Marinho

Gente, sou somente eu que considero um tremendo desrespeito aos judeus religiosos a inauguração do templo de Salomão pela Igreja Universal?


Sim, o cristianismo é tributário do judaísmo e compartilha com ele uma parte da Bíblia... Uma religião influenciar outra e reinterpretar símbolos de outras em seu desenvolvimento é também algo corriqueiro na história. 

Daí a se apropriar de todo um arcabouço simbólico e sagrado de outra religião para despi-lo integralmente de seu sentido ainda existente e substituir esse sentido cirurgicamente por signos de sua própria, macaqueando a outra religião e falsificando os signos dela, eu considero demais.

O Templo é o lugar mais sagrado para os judeus hoje. Salomão era judeu. Seguia o judaísmo. A arca da aliança, pelas histórias bíblicas, teria sido dada por Iavé ao povo judeu, e nela foram guardados os 10 mandamentos, ícones da Lei – que, na interpretação dos cristãos, já passou, uma vez que vivemos na "era da Graça".

Aí, você pega tudo isso, replica um templo judeu que, na verdade, é uma igreja... Traz uma arca judaica, que, na verdade, é agora um símbolo cristão. Veste o Edir Macedo com cara de rabino, quando ele é bispo e pastor... E enche a decoração com símbolos típicos do judaísmo, como o candelabro, destituindo-os de todo o sentido que possuem no próprio judaísmo. Isso parece correto?

A iconoclastia é interessante enquanto estratégia de crítica às religiões, críticas que todas merecem. No entanto, quando uma religião faz isso com outra – e aí, não estamos, portanto, falando mais de iconoclastia –, considero um assunto particularmente sensível.

Fosse eu judeu religioso, de nascimento ou converso (e uso "religioso" porque existem judeus étnicos que não seguem o judaísmo), estaria imbuído de profunda ojeriza e consideraria isso aviltante – e, se eu fosse a presidenta, o ilustre governador, um deputado, um político, teria levado isso em conta antes de decidir ir à inauguração.

Qual o próximo passo? Construir uma Caaba cristã?

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Ainda falando sobre promiscuidade


Ainda pensando sobre o comportamento sexual, algumas pessoas tendem a confundir a promiscuidade com a prostituição, obviamente, tendo, a partir de uma leitura cristã, os valores elencados.

Essa seria uma discussão exaustiva, caso se fosse aprofundar no mérito, entretanto, pode-se compreender o conceito prostituição dentro da cultura cristã e, para a surpresa de muitos, é mutável , tal conceito, dentro da própria Bíblia. Assim, muitas vezes a prostituição é somente feminina, no caso da mulher pega em flagrante adultério, somente a mulher é levada em julgamento; outras vezes, ela é somente uma questão ritualística, alguém está adorando outros deuses e não Yahweh; outras vezes, adquire um sinônimo abrangente, sendo todo aquele que vive uma vida sem regras, desregrada, entretanto, no caso do Filho Pródigo, que vivia essa vida dissoluta, ele não é acusado de prostituição; ainda há a prostituição cultual, envolvendo homens e mulheres, o sexo ganha a esfera sagrada e, por ser prática dos cananeus que rivalizavam com Israel,  assume o peso da abominação.  

Há ainda o comportamento bíblico, perfeitamente aceitável na cultura hebraica, mas que hoje seria,  para os ocidentais cristãos, atos de prostituição, por exemplo:  Abraão teve mais de uma mulher;  Salomão um harém;  no Novo Testamento há a recomendação apostólica que o bispo seja esposo de apenas uma mulher, tal recomendação revela a prática da poligamia entre os próprios cristãos como algo natural.

Como a questão é cultural, a promiscuidade, muitas vezes levantada contra os homossexuais, é um entendimento que não foge à esfera. Nossa sociedade foi educada, por anos, por séculos, a primar por um comportamento “ideal”: o homem monogâmico e macho, que se casa com uma mulher monogâmica submissa e tem filhos. Os gays não têm espaço nessa construção de mundo, a eles resta apenas à sentença de viverem marcados com a desonra da promiscuidade, dos encontros furtivos, à noite, nos becos, vielas, nos guetos, contraindo todas as espécies de doenças, correndo todos os riscos de mortes imagináveis, vivendo solitários, sem família, destruídos pelo próprio comportamento sexual, marginal.

Obviamente, que o ser humano é capaz de ressignificar o seu espaço, inclusive os espaços de opressão, não sendo diferente com a comunidade homossexual que, através de alguns pensadores ilustres e gays, assumiram o modus vivendi , trouxeram expectativas e chocaram a sociedade conservadora, quando declararam o orgulho de serem gays, e de viverem à moda gay.

A intensificação do discurso da promiscuidade como pecado e a tentativa de se negar os direitos civis aos mesmos, por exemplo, o casamento gay,  são as apelações dos reforços de se deixar na marginalidade aqueles que não se enquadram nos parâmetros heterossexuais cristãos dessa sociedade.  Ou seja, não dar espaços iguais para que o preconceito e a segregação continuem regendo um valor injusto. Aqui, nesse aspecto, tem-se uma questão crucial, como a promiscuidade gay é renegada ao subcomportamento desde o século XIX, e o orgulho gay ser uma novidade do final do século XX, a compreensão de que a promiscuidade seja algo imundo, seja pecado, seja nefasta, é compreensão tácita, o que faz de muitos gays, muitos deles jovens, que vivem às voltas com o mundo, entrarem em verdadeiras crises existenciais por não compreenderem adequadamente o papel social que desempenham e a conformidade de seus desejos e satisfações, enquanto seres humanos.


Nestes aspectos a promiscuidade é tão somente uma questão de leitura a quem serve o discurso e para onde se caminha na construção da identidade gay no século XXI. Tentadora a reflexão, que continuaremos em uma próxima oportunidade.  

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Dilma: desgraça para gays


 Dilma: a pior desgraça para os LGBTs


por João Marinho

Quando estive na audiência pública do Senado, em 2007 (uma das vááárias que o projeto já teve: me pergunto por que ainda precisa de MAIS!), que discutia o PLC, vi Ideli Salvatti fazendo um apelo emocionado a favor do PLC 122, quase que com lágrimas nos olhos. Dizia ela que, se o projeto merecesse reparos, que fossem feitos, mas que não se deixasse de aprová-lo, dada a sua importância contra a violência, que vitima tantas famílias.

Seis anos depois, agora assisto à mesma Ideli atendendo ao pedido do Planalto para que adiem o PLC até as eleições de 2014, mostrando novamente como o governo petista e de Dilma Rousseff está de joelhos, desde já, frente ao fundamentalismo – e que papelão da Ideli! Eu pediria para sair, se agir significasse ir contra valores morais que eu mesmo preguei e condenar toda uma população a permanecer à margem do direito positivo, deixando de gozar um direito que seus algozes, os evangélicos, já possuem (a lei já protege contra a discriminação por motivo religioso).

Quero ver agora algum amigo petista ainda defender a "senhora presidenta". Não há dúvida alguma: Dilma Rousseff e seu governo foram a pior desgraça que já aconteceu no Brasil para lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais desde a redemocratização.

Jamais terá meu voto novamente. Sim, voto nulo em 2014 se for necessário, mas nessa pessoa inescrupulosa que colocamos como presidente, jamais. Nem para síndica de prédio. Espero com ardor o dia em que será engolida pela história e envenenada pelas alianças espúrias que se propôs a fazer. Eu, que simpatizava com o PT.

"Vamos votar em uma mulher, um marco histórico para o Brasil", diziam os petistas que me convenceram em 2010. Que piada! Talvez Margaret Thatcher fosse menos pior para o Brasil. Ela, pelo menos, era franca: não se fazia de "defensora" dos direitos de minorias, enquanto dava a rasteira nessas mesmas minorias nos bastidores.

E anotem esses nomes, LGBTs: Wellington Dias (PT-PI) e Walter Pinheiro (PT-BA) não são merecedores de seus votos em 2014 .

Mais e por quê:
http://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2013-12-13/por-2014-planalto-freia-projeto-que-criminaliza-homofobia.html

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Mamãe já sabe...



Encontrei o texto abaixo no meu antigo blog, o Herege

Tem a data exata em que contei para minha mãe que era gay: 9 de janeiro de 2003. Nossa, já faz mais de 10 anos?

Percebam as reações dela. Preciso mencionar que, às vezes, subestimamos nossos pais.

Ao longo do tempo, mesmo evangélica, minha mãe evoluiu, chegando a me consolar quando fiquei solteiro em 2010.

No meu último aniversário, de 22/08/2013, me deu um de meus melhores presentes, ao dizer que não queria que eu fosse em nada diferente do que sou.

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Mamãe já sabe

por João Marinho



A mensagem abaixo foi escrita para a lista GospelGLTTB, mas, mesmo para quem não tem a mesma tradição religiosa (e os textos e referências serão inócuos), vale a pena ler, para saber quais "revoluções" andam acontecendo na minha vida...

"Então disse Sarai a Abrão: Meu agravo seja sobre ti; minha serva pus eu em teu regaço; vendo ela agora que concebeu, sou menosprezada aos seus olhos; o Senhor julgue entre mim e ti. E disse Abrão a Sarai: Eis que tua serva está na tua mão; faze-lhe o que bom é aos teus olhos. E afligiu-a Sarai, e ela fugiu de sua face.

E o anjo do Senhor a achou junto a uma fonte de água no deserto, junto à fonte no caminho de Sur. E disse: Agar, serva de Sarai, donde vens, e para onde vais? E ela disse: Venho fugida da face de Sarai, minha senhora. Então lhe disse o anjo do Senhor: Torna-te para tua senhora, e humilha-te debaixo de suas mãos"
.

Gênesis 16:5-9

Não é do meu costume iniciar um texto para esta lista (GospelGLTTB) por uma passagem bíblica. Sabemos que nós temos interpretações diferentes da Palavra e, eventualmente, uma mesma passagem terá significados diversos que serão arduamente debatidos por aqui.

Entretanto, eu não podia deixar de colocar este texto, porque foi o que me veio à cabeça logo depois do que ocorreu hoje. Hoje, por volta das 9h da manhã, contei para minha mãe a verdade sobre minha sexualidade. Com isso, agora apenas o meu pai resta saber, pois, no final do ano que passou, descobri que minhas duas irmãs já tinham conhecimento de tudo.

O que ocorreu a respeito das minhas irmãs foi algo um tanto complexo, e a história, que se iniciou com um e-mail que recebi por esta mesma lista (aquele que o Paulão enviou à sua mãe e redirecionou para nós), é muito grande e não convém relatá-la detalhadamente aqui. Eu gostaria, porém, de pedir que vocês acessassem meu blog nos endereços abaixo e lessem os posts, pois eles contam tudo a respeito (NR: desnecessário fornecer os links aqui, no Herege, pois seus leitores, é claro, já sabem de tudo).

Com relação à minha mãe, eu não tinha em mente contar para ela hoje. Acordei atrasado para o trabalho, me arrumei e acabamos conversando sobre diversos assuntos, e Deus foi envolvido na conversa. Foi, então, que, tencionando lhe fornecer mais algumas pistas sobre mim, falei que havia certas coisas a meu respeito que ela não sabia, e que eu ainda não tinha achado o momento para contar – que seria definido por Deus.

No final de tudo, resumindo, ela me perguntou se eu era gay. Respondi na lata: "sou". Também lhe contei que o Wagner é meu namorado, que todos os meus amigos, companheiros de trabalho, colegas da faculdade e etc. sabiam a meu respeito e que o único local que ainda restava na condição de "não saber" era, oficialmente, minha casa.

A conversa transcorreu de forma mais tranqüila do que eu pensava. Evidentemente, ela disse que não aceitava, mas a reação foi similar à de minha irmã mais velha: ao que parece, não mudará, ao menos por enquanto, a relação carinhosa de mãe e filho.

Minha mãe chegou a arriscar certas frases típicas, do tipo: "era tudo o que eu não queria", "a gente cria um filho na igreja, dá tudo por ele, e resulta nisso", "você sabe o que a Bíblia diz sobre isso", "homem com homem é muito feio" e "deveria buscar a Deus e pedir para te livrar".

Eu lhe respondi. Disse que não havia motivos para se considerar a homossexualidade tão horrível, que não ia entrar em questões religiosas, mas que tinha razões bem concretas para saber que Deus nada tem contra mim, que já o busquei e essa foi a resposta que Ele me deu. Falei da passagem em que a Bíblia fala que os efeminados não entram no reino do céu, dizendo que, há algum tempo, a palavra original era traduzida por masturbadores.

Disse-lhe que orasse, para que Deus a ajudasse. Que se fosse da vontade Dele, por sua vez, que me casasse com uma mulher e tivesse filhos, que assim fosse, pois eu não resistiria: ao contrário, já até tinha procurado por isso, durante anos. Só que, para mim, a resposta de Deus já estava dada – e não envolvia nada daquilo.

Disse mais: que ela poderia me magoar com aquela história de ter me criado na igreja e ter dado tudo por mim, pois parecia que eles tinham falhado em minha criação e que eu era o pior dos seres simplesmente por amar outro homem, quando, na verdade, sempre me constou que eu era um bom filho: ajudava e ajudo em casa, nunca lhes levei problemas, nunca me viram envolvido em bebedeiras, usando drogas ou coisa do tipo.

Isso, disse eu, é que é importante e deveria ser levado em conta nessa hora, pois é a comprovação de que eles não falharam e de que o que aprendi, carrego comigo. Ela se desculpou, disse que não queria dizer que eu era um mau filho, que estava com a cabeça quente.

A conversa, assim, foi sem sobressaltos, e eu me mantive tranqüilo em todo o tempo. Apenas minha mãe disse que eu nunca falasse nada para meu pai (que é do tipo "machão do Nordeste"), pois ele me admira muito e tem orgulho de mim, e, se eu falar, ele é capaz de morrer. Além disso, ele está numa péssima fase estressada.

Eu lhe disse que morrer, ele não morre (pode até me pôr pra fora de casa, mas não morrer...) e que não falarei "amanhã". Mas, em algum dia, ele deverá saber porque não posso seguir enganando as pessoas, e a descoberta pode vir por outros meios, inclusive pela boca de terceiros.

O que posso dizer é que tudo ocorreu como ocorreu porque Deus, creio eu, estava comigo. Ainda nesta semana, orei a Ele depois de um acontecimento chato com um wallpaper do meu computador (NR: vocês leram sobre isso aqui, no Herege) e pedi que Ele assumisse a direção, que mostrasse a hora certa e a forma certa de contar para meus pais, que eu não iria mais me preocupar com o assunto. A hora, ao menos da minha mãe, veio. Deus deve ter me ouvido, assim como ouviu com relação às minhas irmãs.

No momento, estou um tanto confuso, como quando soube que minhas irmãs já sabiam a verdade. Não sei o que sentir. A situação e a angústia de não saber o porvir já me fizeram chorar por mais de uma vez, junto ao meu fofucho, desde o início do processo. Mas a época da depressão e do desespero já passou, ficou alguns anos para trás, quando eu esquecia de contar as bênçãos (como já pus aqui*) e pensava que Deus não me ouvia e me rejeitava por um "pecado tão vil", quando pensei que morrer seria o melhor para todos.

Deus me tem mostrado que não é assim, que nunca foi assim, a despeito do que outros tantos tenham a dizer em contrário. Talvez o choro seja fruto da perda do controle da minha vida e da queda de todo um castelo de mentiras que criei ao longo de minha adolescência. É difícil ver uma construção sua caindo, mesmo que mentirosa.

O texto de Gênesis me veio à cabeça (Deus?) porque a primeira idéia que tive foi não ir para casa hoje. Liguei para ela posteriormente, aqui do trabalho, para ver como estava, se chorava, etc. Não estava chorando e conversamos normalmente. Talvez o início seja mesmo difícil, mas eu não devo tentar fugir: é hora de enfrentar a minha senhora. Ainda bem.

(*NR: i. e., na lista GospelGLTTB)

sábado, 20 de julho de 2013

Machismo feminino

As mulheres, a religião, o machismo


por João Marinho

Sempre me perguntei por que as mulheres não são todas ateístas, ou não buscam sua religiosidade em credos que as valorizem, como os relacionados à bruxaria e ao Sagrado Feminino.

Nunca consegui compreender ao certo, por exemplo, mesmo quando eu era evangélico, por que existem mulheres evangélicas, que tão alegremente defendem a submissão feminina no casamento ou o uso do véu (como na Congregação Cristã no Brasil) e mesmo permitem que pastores preguem isso em suas cerimônias de união.

Nunca entendi por que há mulheres católicas, pois, mesmo sabendo que há Maria e as santas, não consigo compreender por que aceitam que a valorização seja dada pela virgindade (Maria era virgem) e participam de uma religião que lhes fecha as portas à liderança por causa de seu sexo.

Nunca compreendi por que há mulheres muçulmanas, que aceitam cobrir todo o corpo para manifestar sua "decência", mas não exigem dos homens a contrapartida dessa "decência": a de que o corpo da mulher não é "território livre" a ser explorado, mas que deve ser respeitado mesmo nu - e se contentam com uma religião que lhes "autoriza", na terra, a dividir seu marido com outras três, contra sua vontade; e, no Paraíso dos heróis, a admitir que o mesmo homem seja agraciado por 70 virgens - e ela?

Nunca entendi por que há mulheres machistas, que ensinam a seus filhos que chorar "não é para homem", que arrancam os cabelos ao vê-los brincando de boneca, mas festejam quando se tornam "pegadores" enquanto analisam milimetricamente o comprimento da saia de suas filhas.

Também sempre me perguntei por que há mulheres lesbofóbicas, bifóbicas e transfóbicas, quando lésbicas, mulheres bissexuais, travestis e mulheres trans tão-somente mostram que o feminino pode ser autossuficiente: seja na busca pelo prazer, sem a necessidade da contrapartida peniana; seja no fato de que o pênis, por si só, presente biologicamente em um corpo, não é suficiente para negar à pessoa esse mesmo feminino.

Nunca entendi por que há mulheres homofóbicas (ou, melhor dizendo, gayfóbicas), que se incomodam com "homens que se comportam como mulheres", sobretudo os efeminados - por que, afinal, o que há de tão errado com o feminino para que homens não possam assimilá-lo para si?

A história da norueguesa que denunciou um estupro em Dubai e acabou presa por indecência (http://tinyurl.com/le9c2bb) mostra bem o lugar reservado a elas em leis e costumes baseados em religiões tão machistas, tão masculinas e tão fechadas ao feminino, religiões que também condenam todas as sexualidades "desviantes" e "desviadas" - e não me venham dizer que "não tem nada a ver com religião", pois em um país majoritariamente islâmico e onde a ideia de laicidade é mais fraca, tem tudo a ver com isso, sim.

No entanto, não é só no Islã que vemos essas barbaridades. Hoje, o Ocidente ainda desrespeita muito suas mulheres, mas inegavelmente sua vida é mais fácil, ou menos difícil, e sofre menos interditos. No entanto, que esteja clara uma coisa: se isso aconteceu, a religião - cristã ou judaica - é a última a quem deve ser dado qualquer reconhecimento, posto que, enquanto pôde, resistiu às mudanças. Ainda resiste, e, via de regra, tenta revertê-las.

O feminismo muito ajudou em denunciar essa sociedade machista. Em lutar por direitos iguais - luta que está longe do fim. No entanto, nunca vamos chegar lá se as mulheres não perceberem que elas também contribuem para o estado machista das coisas. Há feministas que tratam todos os homens como inimigos e todas as mulheres como vítimas, quando há homens que apoiam os direitos femininos e mulheres que se esmeram em reproduzir o discurso antifeminino e misógino e ainda lutam pelo "direito a tê-lo" por "razões morais e religiosas".

Alguém há de argumentar que a dominação do patriarcado tomou conta do corpo e das mentes femininas de tal forma que elas assimilaram essas ideologias. Isso tem fundamento: percebemos isso até em gays homofóbicos. Os outsiders assimilam a ideologia dos estabelecidos e passam a concordar e estimular a própria segregação.

Isso, porém, não retira a parcela de responsabilidade que cabe a essas mulheres, assim como não retira a responsabilidade da homofobia nutrida por gays. Porque, se há uma coisa que aprendemos sobre liberdade é que ela não pode ser imposta. Não se pode obrigar alguém a ser livre. A liberdade tem de ser querida, desejada, almejada e, não raro, conquistada.

Eu me pergunto, inclusive, até que ponto o horror ao estupro não está ligado ao machismo de alguma forma, à ideologia do corpo dominado da mulher e sua valorização a partir da "pureza" e da "virgindade". O estupro seria, portanto, horrendo não apenas por atentar contra o corpo da mulher, mas por atentar contra sua "pureza", pré-exigida pelos machos em busca de parceira.

Não, não nego que o estupro seja um crime hediondo, à medida que atenta contra o corpo e a liberdade violentamente, mas sempre me chamou a atenção que fosse considerado menos grave ou inexistente quando a vítima fosse homem (supostamente "forte" e "dominante"), especialmente tendo a mulher como agressora, ou ainda fosse considerado menos grave ou inexistente quando supostamente oriundo de comportamentos permissivos por parte da mulher-vítima: se ela vai a um baile funk com roupas mais curtas e requebra-se no colo de um rapaz, é como se este "ganhasse" o direito de penetrá-la sem autorização.

Também sempre me chamou a atenção que o comportamento supostamente permissivo por parte da mulher, no usufruto de seu corpo, fosse considerado um diferencial para atestar sua imoralidade e sua impossibilidade de ser considerada vítima ou cidadã. A prostituta que não é explorada por cafetões e cafetinas e escolheu sua profissão não pode ser feliz na campanha do Ministério da Saúde, mesmo sendo tal campanha oriunda de oficinas com apoio de organizações de prostitutas e buscando o resgate de sua autoestima.

Voltando ao caso de Marte Deborah Dalelv, a norueguesa de 24 anos condenada em Dubai, que saiu de uma festa depois de ter bebido e, sob o efeito de álcool, foi estuprada e penetrada contra a vontade - e, após denunciar o crime, foi condenada por atentado à decência, ingestão de álcool e sexo antes do casamento -, me pergunto quantos homens... E mulheres... Ficariam ao lado dela se o sexo tivesse sido consentido.

Quantos e quantas defenderiam que é imoral condenar uma mulher que quis f*der antes do casamento (e uso essa expressão para não amenizar o aspecto tão carnal e visceral de um bom sexo), porque o corpo é dela? Ou será que notaríamos uma mudança no discurso, que passaria a condenar a mulher de olhos claros porque "evidentemente" teria desrespeitado os costumes de Dubai e deveria "ter se comportado"?

Eu aposto minhas fichas na segunda hipótese - e você? Se concordar comigo, havemos de chegar a um ponto comum: o fato de que tantas mulheres reproduzam esse discurso significa que precisamos, urgentemente, de uma Revolução Feminina.

terça-feira, 2 de julho de 2013

Ganhamos uma batalha


Cura gay: ganhamos uma batalha, mas não vencemos a guerra




 por João Marinho

Meses atrás, em uma das edições da Sex Boys, uma das revistas das quais sou editor-chefe, o jornalista Erik Galdino escreveu um artigo que, não faz muito tempo, fiz questão de republicar. O tema: fazendo militância sem ser ativista.

Sem abrir mão da importância das ONGs e instituições – como os partidos, fundamentais para o jogo democrático e para a defesa de interesses e pautas sociais –, Galdino argumentava que, porém, nem sempre é necessário estar filiado a uma para militar: a militância pode, e deve, ser exercitada no dia a dia.

Ao assumir-se gay e assumir-se cidadão para sua família, amigos ou colegas de trabalho. No ônibus, ao não engolir aquele comentário homofóbico que fizeram a você sem saber de sua sexualidade. Ao defender as travestis de quem fala mal das “de pista”. Ao ajudar a pressionar o vereador, deputado ou senador em que você votou por conta de leis preconceituosas. Ao participar das passeatas. Ou mesmo, como conta o próprio Galdino em seu artigo, recusando-se a seguir viagem com um taxista que reclamou, de forma ofensiva, da passeata dos “veados”.

Tudo isso é militância, e fazendo isso, você ajuda, mesmo que seja apenas um pouco, a mudar o País e a mentalidade de muita gente.

João Silvério Trevisan, nos tempos áureos da G Magazine, já comentava que sair do armário é, nas palavras minhas, um ato político. É uma verdade. Quando você se assume, as coisas que você faz, o que você diz, como você se porta e como você defende seus semelhantes viram parâmetro para as pessoas que o cercam e que, muitas vezes, estão conhecendo o primeiro LGBT assumido da vida delas. Tenho absoluta certeza de que influenciei a muitos assim.

Comecei a me envolver com militância LGBT em 2002, após um casal de lésbicas ser massacrado no programa “Superpop”, de Luciana Gimenez – que muitos acham ser uma musa gay. Só que não. A reação àquele evento resultou numa ONG que não vingou, a Pró-Conceito de Gays e Lésbicas, cuja história completa você pode ler aqui.

Não vingou, mas produziu um guia para a mídia traduzido até no Equador, base para o guia muitos anos depois editado pela ABGLT e que iniciou algumas pessoas, eu incluído, na militância. Foi apenas uma das vitórias de que posso me orgulhar ao me envolver na defesa de direitos que, afinal, são também meus.

A verdade, porém, é que nenhum movimento social é perfeito. O movimento LGBT também não, e há, no Brasil, profundos problemas que, com o tempo, me afastaram da militância organizada, orgânica. Ainda assim, sempre estive por perto, para apoiar quando necessário, para criticar quando achava que devia, para influenciar e informar no meu papel de jornalista e para me juntar a eles, sempre que as necessidades assim o demandassem.

Outra verdade é que, considerando isso, há também grandes vitórias da militância LGBT nacional. Sabe a união homoafetiva, aprovada no STF? Muita gente pensa que ela surgiu “do nada”, porque Sérgio Cabral (PMDB), do Rio, foi iluminado por algum espírito, e Deborah Duprat idem. Ambos propuseram a ADIN e a ADPF que resultaram na decisão do Supremo.

Cabral e Duprat realmente foram nossos aliados e fomos agraciados com uma janela de 15 dias que permitiu à última assumir a Procuradoria da República e propor uma ação a favor da união homoafetiva no Supremo.

No entanto, essa ideia não surgiu do além. A proposta de entrar no Supremo havia sido costurada anos antes pelo movimento LGBT e já se encontrava razoavelmente consolidada. Precisávamos de apoiadores que dessem sequência a ela. Foi onde entraram ambos. Em suma, se você pode casar hoje, claro leitor LGBT, você deve, sim, ao movimento LGBT – e adivinha quem estava numa das primeiras reuniões no Centro de São Paulo sobre o assunto e acompanhou as discussões online? Euzinho. Mais um motivo de orgulho.

Também me orgulho de ter ajudado a fazer Kassab vetar o Dia do Orgulho Hétero. Sem ser orgânico, ao produzir uma pauta para a “Sex Boys”, notei que Kassab havia prometido vetar, mas não tinha vetado: nada saíra no Diário Oficial.

Notei que o prazo estava no fim. Liguei para a Ouvidoria da Câmara, para a Prefeitura, e, ao saber que nada tinha sido enviado à primeira vetando o projeto do evangélico Carlos Apolinário (PMDB), fiz barulho junto à militância orgânica, especialmente a ligada aos partidos. Os militantes cobraram seus vereadores, houve pressão e, na “bacia das almas”, Kassab vetou.

Ricardo Rocha Aguieiras, meu amigo, sempre me disse que, não fosse eu ter percebido aquilo, o prazo teria terminado e a Câmara teria promulgado a lei, como diz o processo da coisa. Talvez seja exagero, mas a verdade é que, mesmo como cidadão comum (e jornalista), fui uma das formiguinhas que ajudou aquilo a não passar.

Agora, tenho mais um motivo de orgulho. Há meses, questionei o Diversidade Tucana sobre o papel do pastor João Campos como líder da bancada evangélica e articulador antigay. João Campos é do PSDB e autor do projeto de “cura gay”. Sei que o Diversidade agiu dentro do partido para tentar anular Campos, sem muito sucesso.

Insatisfeito, publiquei como jornalista, um artigo dizendo que, enquanto nos mirávamos em Feliciano (PSC) e Bolsonaro (PP), incompetentes, João Campos seguia incólume nos bastidores, a inteligência por trás dos peões.

Quando o militante Leo Mendes escreveu sobre a mesma coisa, apontando que o projeto de “cura gay” era de Campos, prontamente entrei numa campanha para pressionar o PSDB.

Mais um artigo escrito, elogiado por Luiz Mott. Outros aderiram comigo, e a pressão, aliada às imprescindíveis manifestações de rua, fez surgir uma nota oficial, próxima das manobras no Congresso para levar o projeto a plenário e “enterrá-lo”, nas palavras de Henrique Alves (PMDB)

Suficiente? Não. O mandato é do partido, então, continuamos pressionando. Agora, sem apoio dentro do próprio PSDB, João Campos pede a retirada da “cura gay” de pauta: http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,autor-pede-retirada-de-tramitacao-do-projeto-da-cura-gay-na-camara,1049449,0.htm e http://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2013/07/02/camara-dos-deputados-arquiva-cura-gay.htm. O que ainda precisa ser votado.

Vitória nossa? Sem dúvida. Mesmo com Marisa Lobo dizendo que não, que “ela” pediu a retirada, foi, sim, uma vitória da pressão LGBT e de nossos aliados. Orgânicos e militantes não filiados. Gays e héteros. Negros e brancos. Psicólogos e pacientes. Tucanos e não tucanos. Estamos em todos os lugares, e juntos somos mais fortes.

Vencemos, porém, uma batalha – mas não a guerra. Se aprovada a retirada, o projeto, em vez de ser definitivamente derrubado, poderá voltar na próxima legislatura, em 2015. Foi uma vitória, mas também uma manobra evangélica, uma retirada estratégica.

Feliciano já ameaçou, dizendo que “haverá mais políticos evangélicos”, como se evangélicos – os verdadeiros – não tivessem coisas mais importantes para pensar sem ser nos ânus das pessoas e na sua vida sexual e afetiva.

É, porém, um risco verdadeiro. Cabe a nós não esquecermos, não deixar que aconteça e ajudar a diminuir, no pleito, a existência de políticos fundamentalistas. Não votar neles. Fazer campanha contra eles – e vigiar sempre, para que, em 2015, o Congresso não entre em tentação e tente, novamente, aprovar essa excrescência.

Eu não vou esquecer. Você vai?

... E parabéns ao PSDB. Não sou tucano, mas antes tarde do que nunca.

quarta-feira, 26 de junho de 2013

"Cura gay": por que ser contra



É correto falar de "cura gay" para o projeto de João Campos (PSDB) e Marco Feliciano (PSC)?

por João Marinho

Adiantando a resposta: sim, é correto.

A fim de esclarecer o tópico, vale passar o link com a Resolução completa do CFP 01/99 e discutir a manipulação que se observa por parte dos religiosos fundamentalistas:
http://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/1999/03/resolucao1999_1.pdf

Vamos agora à análise.

Os termos em que se fundamenta a resolução são bem claros:

- Os psicólogos são profissionais de saúde;
- Os psicólogos são interpelados sobre sexualidade;
- Os psicólogos devem considerar a identidade sexual como parte da totalidade do sujeito;
- A homossexualidade não é reconhecida como distúrbio ou perversão;
- Existe um preconceito social atinente a práticas sexuais minoritárias;
- A psicologia deve contribuir para o esclarecimento dessas práticas.

Assim, toda a resolução do Conselho Federal de Psicologia tem de ser entendida à luz desses fatores.

Vamos a eles.

O artigo 1º diz que os psicólogos atuarão segundo os princípios éticos da profissão, notadamente, entre eles, os que dizem respeito ao bem-estar das pessoas.

Isso significa, ao contrário do que dizem os defensores da “cura gay”, que, não, nenhum psicólogo está "proibido" de atender homossexuais. Ao contrário. À luz dos princípios da não discriminação e do bem-estar do paciente, ele deve atendê-los.

Alvo do projeto de Campos, o artigo 3º diz, no entanto, que os psicólogos não exercerão ação que favoreça a patologização do homoerotismo.

A orientação é clara. Os psicólogos podem e devem oferecer apoio ao paciente que os busca insatisfeito com sua orientação sexual (artigo 1º), mas não podem tratar da questão como se doença fosse, por ser incompatível com o consenso científico atual.


A este respeito, vale estabelecer um paralelo com o HIV, embora este seja doença: o médico pode e deve fornecer apoio ao soropositivo, mas não pode prometer uma cura que inexiste sob o consenso científico. O psicólogo pode e deve fornecer apoio ao paciente, homossexual ou não, mas não pode ofertar uma cura para algo que, sob consenso científico, não é doença.

O artigo 3º se complementa ao enfatizar que o psicólogo não pode coagir o paciente para tratamentos não solicitados e, como a homossexualidade não é doença e, portanto, não é passível de cura, também estão vetados de participar de eventos e serviços que a proponham pelo mesmo motivo: não podem compactuar com a informação, incorreta cientificamente falando, que a homossexualidade é doença passível de ser curada.

O artigo 4º, também alvo de Campos/Feliciano, veta que psicólogos participem de pronunciamentos públicos que, literalmente, reforcem a ideia de os homossexuais serem portadores, por conta de sua homossexualidade, de desordem psíquica. Qual a razão disso? Se homossexualidade não é doença e nem distúrbio à luz da psicologia, não cabe ao psicólogo sair divulgando essa ideia, incorreta cientificamente.

Percebam, no entanto, que não existe qualquer proibição de o psicólogo religioso, por exemplo, considerar a homossexualidade "pecado", nem de crer no poder transformador e espiritual divino, uma vez que isso não faz parte da atribuição científica e nem jurisdicional do CFP.
O psicólogo pode, então, dizer que a homossexualidade é pecado? Como religioso, pode. Como profissional, não pode é dizer que é desvio psíquico. Simples assim.

Apoiadores da “cura gay” também dizem que a resolução do CFP é fruto de uma “militância extremista” dos homossexuais e que impede a pesquisa científica envolvendo a homossexualidade.

Pode até haver essa militância “extremista”,  o que quer que seja ela, mas o que baseia a resolução não é a “militância”: é não haver consenso científico sobre homossexualidade como desvio e o fato de a mesma não ser reconhecida como tal desde os anos 90 pela OMS. Ponto.


A resolução sequer toca em pesquisa científica, uma "inflação" que só encontra eco nesse povo religioso que acha tudo o "fim do mundo". Resoluções semelhantes existem em todo o mundo, e as pesquisas sobre a homossexualidade continuam existindo como sempre.

A resolução também não proíbe o atendimento aos homossexuais insatisfeitos com sua orientação sexual. Também não proíbe que homossexuais procurem psicólogos, nem que acreditem que possam ser "curados" por uma interferência espiritual, ervas ou algo que o valha. O que seria ridículo: o CFP determina normas para os psicólogos, não para os pacientes.

O que a resolução diz é que o psicólogo tem de se guiar pela ciência – e a ciência diz que a homossexualidade não é distúrbio, não é doença, não é passível de tratamento. Ponto.

Assim, no caso de ser procurado por um homossexual insatisfeito com sua orientação sexual, o psicólogo deve tratar suas neuroses, trabalhar seus sentimentos negativos e buscar, com anuência desse paciente, uma forma de equilibrar sua vida e sua psique na existência de uma orientação sexual que ele rejeita.

Homossexuais sempre puderam buscar atendimento psicológico. Sempre puderam ser tratados sobre sua sexualidade. Tenho duas amigas que se descobriram lésbicas, uma religiosa, e foram buscar atendimento psicológico para se entenderem e abordarem seus conflitos. Um dos rapazes que se descobriu gay na minha ex-igreja fez o mesmo. Em nenhum caso, os psicólogos foram "impedidos" de prestar atendimento. Eu mesmo sou gay, já tive problemas com minhas práticas sexuais e faço terapia há anos!

Aliás, meu psicólogo, João Pedrosa, conduziu uma pesquisa sobre homossexualidade anos atrás, da qual participei como voluntário, e que virou um livro: http://www.livrariacultura.com.br/scripts/resenha/resenha.asp?nitem=3251593. O que prova, mais uma vez, que essa história tosca de "pesquisas não podem ser feitas por causa da resolução" é pura e simplesmente mentira!

A resolução é exorbitantemente simples: o que o psicólogo não pode fazer é falar de mudar a orientação sexual do paciente, de curá-la, de alterá-la, porque isso inexiste no consenso científico. E porque não é doença.

Ao tentar derrubar os citados artigos, o que João Campos faz é tentar abrir as portas para uma categoria bem específica de psicólogos: os psicólogos evangélicos fundamentalistas, para que estes possam defender que a homossexualidade é doentia e aplicar, em seus consult
órios, ferramentas de cunho religioso – já que inexistem ferramentas científicas sob consenso – voltadas para a "reorientação" sexual sem sofrerem sanção dos Conselhos. É também permitir que esses psicólogos se associem a igrejas neopentecostais e suas práticas "espirituais" e questionáveis de "reorientação" sexual.

Em suma, uma abertura para o charlatanismo.

Similar, por exemplo, a permitir que os médicos possam praticar exorcismo sem considerar que essa prática não encontra consenso científico e sem poder fazer nada para separá-la da práxis profissional, que, no entanto, deve(ria) ser guiada pelo mesmo.


Estamos conversados?

sexta-feira, 29 de março de 2013

DESCORTINANDO O CRISTIANISMO (EVANGÉLICO)

Por João Marinho 

Resposta à questão, surgida em uma lista de discussão: "Eu não consigo entender um povo preocupado com a intimidade de outras pessoas... Eu não consigo entender como uma religião pregando o que Deus gosta e não gosta sem qualquer argumento pode colar"


Eu consigo entender.

Vou fazer aqui uma reflexão que não necessariamente deverá resultar em estratégia política, mas uma coisa que me chamou a atenção nessa e em outras lutas que travamos contra os fundamentalistas religiosos é sempre, de nossa parte, a tentativa de separar criatura e criador.

Resumindo: atacamos Marcos Feliciano, mas sempre procuramos deixar claro que "respeitamos a religião e não estamos dizendo que temos ódio dela". Às vezes, me pergunto se essa é a única forma que resta para combater o fundamentalismo, porque a verdade nua e crua é que a religião é, sim, culpada. Não são apenas as pessoas que "fazem mau uso da fé".

Qualquer um que tenha se debruçado sobre a teologia cristã com sinceridade e sobre a história dessa religião reconhecerá que o cristianismo possui um DNA beligerante em sua gênese, que hoje se manifesta até no vocabulário dos fiéis. É a guerra espiritual, a marcha por Jesus, o exército de Deus e por aí vai.

E isso não é por acaso.

Desde que me tornei ex-evangélico, sempre argumento que, sobretudo para o cristianismo protestante, o Diabo é que é, na verdade, sua estrutura – não Jesus.

Essa afirmação, que pode parecer chocante, ocorre pela constatação de que "para funcionar", o cristianismo, e boa parte dos cristãos, precisam acreditar que estão em guerra contra os "poderes deste mundo". Precisa haver um inimigo. Precisa haver algo com que "se preocupar". Precisa haver algo contra o que guerrear. Precisa haver algo ameaçando a integridade humana, um mal, espreitando, para ser combatido em nome de Deus.

Judeus no nazismo, bruxas na Inquisição, os infiéis muçulmanos nas Cruzadas, nós agora. Pegue qualquer tempo histórico e, sempre que o cristianismo prevalece, é preciso haver um bode expiatório que representa o exército de Satã a ser combatido em nome da "verdade" bíblica. Uma ameaça, a ser debelada em nome de Deus-Pai, com as armas do Espírito Santo, travestido do amor que (supostamente) o Filho dedicou à raça humana.

Se é verdade que há cristãos que assim não procedem, é verdade também que esse tipo de argumento ecoa fundo no coração de muitos outros, até por pertencer, sim, a uma tradição teológica e de práxis cristã, que conta aí com alguns milhares de anos.

A questão não é eles estarem preocupados com a "intimidade das pessoas". A questão é ver os (supostos) "sinais" de que o mundo "jaz no maligno", como reporta sua Bíblia, e resistir a ele "em nome de Deus", "combatendo o bom combate" contra o "príncipe desse mundo", Satanás.

Simplesmente, os gays foram alçados, sob os argumentos de pastores, prelados e teólogos protestantes e católicos, como a mais recente "ameaça" oriunda desse poder maligno, visando a destruir a "obra de Deus", manifesta no suposto risco que representam para a "família" (ela mesma de origem divina, segundo a Bíblia) e uma suposta perseguição aos cristãos e seus valores, o que também ecoa fundo na teologia e espírito dos fiéis, dado o histórico de perseguição movido pelo Império Romano e outros agentes ao longo da história e mesmo agora. Toca-se também em outra fibra nevrálgica: o "Ide", a ordem de Cristo para pregar a palavra a "todas as nações".

Resumindo, não é verdade que o problema são as pessoas, apenas. Não é verdade que são todas elas "exploradas e enganadas por pastores malfazejos". Não é verdade que o problema seja o fundamentalismo, apenas. Não é verdade que a religião cristã prega o amor entre todos, centrada no exemplo de Cristo. A religião, ela-mesma, é parte, sim, do problema. É ela que provê o que temos visto agora. Ao menos em parte, o cristianismo é, sim, arrogante, beligerante, intolerante.

Para o evangélico médio, a igreja católica é a prostituta da Babilônia e apóstata. Os espíritas são hereges. Candomblecistas e umbandistas são manipulados pelos demônios, que são quem realmente se manifesta em suas rodas. Budistas, muçulmanos, judeus e membros de qualquer outra religião, além dos ateus, têm como destino final o inferno, por não terem aceitado "Jesus como seu único, legítimo e suficiente salvador". Esse é o lado obscuro do cristianismo, notadamente o evangélico, que é importante que vocês conheçam. Eu sei. Eu já fui evangélico – e não se enganem: isso se ensina dentro dos templos, nas escolas dominicais, nos púlpitos e nos sermões.

Embora isso que estou dizendo talvez não possa se consolidar em uma estratégia política, espero pelo dia em que movimentos afins possam descortinar esse lado que eles tão bem fazem questão de manter escondido. Que os católicos que apoiam os evangélicos em suas demandas saibam que, no fundo, aquele pastor do lado acredita que ele irá ao inferno por apostasia e heresia, destino não muito diferente do que, segundo eles, espera nós outros, gays.

E que, um dia, paremos de dizer que a religião "não tem culpa alguma" e passemos a tratá-la da forma como eles nos tratam, baseando-se nela. Que, se, com base nesse sistema de fé, se veem eles no direito de não aceitar nossa sexualidade (da qual, diferentemente do que fazemos em relação à sua religião, se esforçam em jogar na lama na primeira oportunidade e tachá-la de maligna e desviante), nós também temos o direito de não aceitar sua fé – e muito menos qualquer imposição que venha desse sistema do qual, segundo a tradição, enfim, já estamos, desde sempre, excluídos.

Não é hora de repensar alguns discursos? Mostrar que defender o direito gay é defender também as famílias, das quais gays não apenas participam, mas também formam? Chamar para um diálogo os cristãos que escaparam dessa armadilha teológica? Retomar os valores humanistas e iluministas de que religião é foro privado, em vez de isentarmos a mesma de toda e qualquer culpa? A se pensar.

Abraços
João Marinho

sexta-feira, 6 de abril de 2012

A polêmica dos símbolos religiosos


Faz sentido retirar cruzes e outros objetos dos tribunais e repartições públicas?

* por Renato Hoffmann

O Estado brasileiro é laico, mas as repartições públicas não! Essa é a real sensação de qualquer cidadão ao entrar em estabelecimentos do Executivo, Legislativo e Judiciário nesse país. Na minha infância, quando estudei em escolas da rede municipal, lá estava ele: O Crucificado, em cima do quadro negro, bem ao centro da classe. No colégio, ele já não estava em sala de aula, mas na secretaria e na diretoria, e quando me mudei para um colégio católico, não senti a diferença visual do público para o privado, pois era tudo igual; crucifixos, crucifixos e mais crucifixos!

Em princípio, e para grande maioria, isso pode não transparecer uma dificuldade, ou algo que, de fato, deva ser levado a sério. Contudo, a questão existe, e não é mínima, em sentido de insignificância, que não deva ser debatida ou venha ser colocada de lado, em segundo plano. Até, pelo fato, de que, ao se garantir um Estado laico, a liberdade de consciência e de crença, conjuminadas com as inúmeras liberdades, formam o escopo das liberdades constitucionais, e são garantias de direitos fundamentais. Aliás, direito esse que o Estado deve atuar de forma “positiva”, ou seja, não apenas não intervir na liberdade- autonomia privada, mas, no que diz respeito à conquista da liberdade, garantir a manutenção da mesma, pois o indivíduo, cidadão, depende da postura ativa do Estado, para que suas liberdades constitucionais sejam concretas. Assim, muito além de se ter uma liberdade perante o Estado, a laicidade, evocada na Constituição da Republica, como uma forma positiva de atuação, vem nos garantir o desfrutar das liberdades mediante a atuação do mesmo Estado.

Mas o que significa dizer isso? Significa, exatamente, à afirmação que vem expressa no Art. 19, inciso I da CR/88:

É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:


I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes, relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.

Em outras palavras, quando o Estado procede dessa forma, ele está de modo “positivo” garantindo as liberdades constitucionais de todos, sem intervir, ou fomentar, qualquer uma que seja, em oposição a todas elas que existem, dentro do espaço público que é laico. Entretanto, quando às repartições públicas é estabelecida uma imagem religiosa, qualquer que seja; de qualquer religião que for; uma opção é feita, lamentavelmente, em privilégio de uma confissão de fé, em demérito e flagrante desrespeito a todas as outras que não tiveram o mesmo privilégio de ter os seus símbolos expostos como padrão de crença ou ideologia que se segue dentro de determinada repartição do poder público. Assim, jamais o Estado poderá ser neutro, pois sendo neutro, ele não se manifesta, e as religiões de maioria aproveitam da situação para usarem o espaço público em nome de uma omissão confundida com neutralidade.

Na verdade, imediatamente a própria Constituição da República passa ser maculada, e o ente público, ou o próprio Estado, passa a uma atuação NEGATIVA das próprias liberdades constitucionais, pela inibição, constrangimento e declaração do que se segue, ou da linha ideológica adotada dentro de determinado setor, pois, se a própria constituição afirma que: ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei (Art. 5º, inciso VIII da CR/88). Quando um símbolo de fé sobressai em um órgão público, o direito de todos os outros símbolos coexistirem, de todas as outras religiões, de igual forma, sobressaírem foi vedado. Destarte, quando o Estado se opõe a todas as religiões em nome da laicidade, ele passa a garantir que todas possam conviver; coexistir com os mesmos direitos e da mesma forma, sem fomentar qualquer ideologia que seja ou subvencioná-las, e ainda poderá, mediante o interesse público, ter a colaboração de qualquer uma que seja, sem custodiar doutrinas ou ideal religioso no espaço comum estatal.

E é nesse aspecto, que gostaríamos de discordar do ilustre magistrado federal, Willian Douglas, em seu artigo: Ação contra crucifixos mostra intolerância, publicado no site Genizah (http://www.genizahvirtual.com/2012/03/acao-contra-crucifixos-mostra.html), em que este defende o “direito” do crucifixo estar onde está numa repartição pública! Partindo da premissa das questões históricas, da construção de identidade brasileira, fluídas da identidade católica e do direito da maioria impor sobre a minoria seus ideais.

Nessa questão, o magistrado usou conceitos do constitucionalista e advogado judeu, Josph Weiler, no Tribunal Europeu de Direitos Humanos, em que este defendeu o direito da Itália ter crucifixos em repartições públicas e salas de aula estatais. Acontece que, o mesmo constitucionalista, na mesma defesa, também defendeu o direito da França em não se ter os mesmos símbolos religiosos expostos! E tudo passa pelo direito interno de cada país. Na Itália, embora Estado e religião sejam separados constitucionalmente, há acordos internacionais em que se celebram alianças entre o Estado italiano e o Vaticano, e a educação católica no país. Assim, Josph Weiler, em nome da nacionalidade, tradição e historicidade italianas, posicionou-se pelo respeito do Tribunal Europeu às questões de identidade próprias. Afirmou que não seria de bom senso que Estrasburgo impusesse uma determinação, que violasse a própria identidade nacional, sem que essa fosse deixada, largada, primeiro, internamente, assim compete às sociedades mudar; se um dia os ingleses decidirem deixar de ter o Anglicanismo como religião oficial, podem fazê-lo. Entretanto, Não compete a Estrasburgo fazer isso por eles!

E nesse aspecto, específico, e muito próprio da defesa de Weiler, parece-nos que o preclaro juiz, Willian Douglas, tenha se equivocado um pouco, ao descontextualizar a defesa no Tribunal Europeu e traduzi-la à situação brasileira. E isso, exatamente, pelo fato do Brasil ter se pronunciado pela laicidade positiva do país na sua Constituição da República Federativa de 1988. Portanto, o argumento em que se evoca que daqui a alguns anos não só os símbolos serão retirados, mas como os feriados religiosos serão abolidos e toda a identidade histórica que flui dessa religiosidade será demolida, é no mínimo um exagero. Nenhuma identidade de nome de rua, de estado federativo, ou monumento corre risco pela própria manutenção CONSTITUCIONAL do patrimônio histórico-cultural e direito a essa identidade serem garantidas. Embora, pensamos que a manutenção dos feriados religiosos seja uma corrupção do direito a laicidade, a defesa do patrimônio religioso como identidade não o é. E, em momento algum está em jogo tal proposição, mas tão somente aquela em que independente do Brasil ter uma maioria cristã, o Estado brasileiro decidiu pela manutenção da pluralidade da liberdade de consciência, e somente de forma positiva, quando essa liberdade é garantida pelo Estado de forma a contemplar a todos, e não a maioria, mas a todos, é que, de fato, as liberdades constitucionais são desfrutadas pela tutela do próprio Estado na sua atuação direta,e não na sua neutralidade, em fingir que se tem a laicidade enquanto uma religião de maioria é contemplada e todas as outras devam respeitá-la, enquanto ela mesma não respeita ninguém!

Por óbvio que em um tribunal onde se está um crucifixo, na sala de um magistrado qualquer, se o escrivão desejar colocar o seu ebó do candomblé, na porta de entrada da sala, será repreendido pelos cristãos e pela ofensa da fé deles, pois ao que pese o Estado é laico e, portanto, tal obejeto de culto não é permitido, somente o crucifico, pois o Estado laico admite a imposição da maioria, a nosso ver, parece tão somente uma falácia argumentativa, de um preconceito sem precedentes, de um desrespeito desmedido pela própria constituição e seus ditames em nome de uma fé sincrética.

*Renato Hoffmann é bacharel em Direito e pós-graduado em psicologia.

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    Ação contra crucifixos mostra intolerância

    William Douglas

    Veja esta notícia publicada no Portal IG:

    “(…) em atenção à queixa de um cidadão, que se sentiu discriminado pela presença de um crucifixo no Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo, a Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão entrou com uma ação civil pública para obrigar a União a retirar todos os símbolos religiosos ostentados em locais de atendimento ao público no Estado. A ação, com pedido de liminar, visa garantir a total separação entre religião e poder público, característica de um Estado laico, ainda que de maioria cristã, como o Brasil. ‘Minha ação restringe-se aos ambientes de atendimento ao público. Nada contra o funcionário público ter uma imagem de santo, por exemplo, sobre a sua mesa de trabalho’. Católico praticante (‘comungo e confesso’, diz Dias, 38 anos, o Procurador responsável pela ação. Uma decisão favorável no TRF-SP certamente levará o assunto a outras instâncias. O único precedente que existe é negativo. Em junho de 2007, o Conselho Nacional de Justiça indeferiu o pedido de retirada de símbolos religiosos de todas as dependências do Judiciário. Na ação pública, Dias lembra que, além de estarmos em um Estado laico, a administração pública deve zelar pelo atendimento aos princípios da impessoalidade, da moralidade e da imparcialidade, ou seja, garantir que todos sejam tratados de forma igualitária. O procurador entende, nesse sentido, que um símbolo religioso no local de atendimento público é mais que um objeto de decoração, mas pode ser sinal de predisposição a uma determinada fé. “Quando o Estado ostenta um símbolo religioso de uma determinada religião em uma repartição pública, está discriminando todas as demais ou mesmo quem não tem religião, afrontando o que diz a Constituição’.” (04/08 - 16:29 - Mauricio Stycer, repórter especial do IG).

    O tema vem sendo cada vez mais discutido e, ao meu ver, está sendo objeto de uma interpretação equivocada por aqueles que desejam a retirada dos símbolos religiosos. O Estado é laico, isso é o óbvio, mas a laicidade não se expressa na eliminação dos símbolos religiosos, e sim na tolerância aos mesmos.

    A resposta estatal ao cidadão queixoso, mencionado acima, não deveria ser uma ação civil pública, mas uma simples orientação, no sentido de que o país ter uma formação histórica-cultural cristã explica que haja na parede um crucifixo e que tal presença não importa em discriminação alguma. Ao contrário, o pensamento deletério e a ser combatido é a intolerância religiosa, que se expressa quando alguém desrespeita ou se incomoda com a opção e o sentimento religioso alheios, o que inclui querer eliminar os símbolos religiosos.

    Ao contrário do que entende o ilustre Procurador mencionado, a medida não se limitará aos ambientes de atendimento ao público. O próximo passo será proibir também os símbolos na mesa de trabalho, seja porque o ambiente pertence ao serviço público, seja porque em tese poderia ofender algum colega que visualizasse o símbolo. No final, como se prenuncia no poema “No caminho, com Maiakóvski”, o culto e devoção terão que ser feitos em sigilo, sempre sob a ameaça de que alguém poderá se ofender com a religião do próximo. Nesse passo, eu, protestante e avesso às imagens (é notório o debate entre protestantes e católicos a respeito das imagens esculpidas de santos), tive a ocasião de ver uma funcionária da Vara Federal onde sou titular colocar sobre sua mesa uma imagem de Nossa Senhora de Aparecida. A minha formação religiosa e jurídica, onde ressalto a predileção, magistério e cotidiano afeito ao Direito Constitucional, me levou a ver tal ato com respeito, vez que cada um escolhe sua linha religiosa. A imagem não me ofendeu, mas sim me alegrou por viver em um país onde há liberdade de culto. Igualmente, quando vejo o crucifixo com uma imagem de Jesus não me ofendo por (segundo minha linha religiosa) haver ali um ídolo, mas compreendo que em um país com maioria e história católica aquela imagem é natural. O crucifixo nas cortes, independentemente de haver uma religião que surgiu do crucificado, é uma salutar advertência sobre a responsabilidade dos tribunais, sobre os erros judiciários e sobre os riscos de os magistrados atenderem aos poderosos mais do que à Justiça.

    Vale dizer que se a medida for ser levada a sério, deveríamos também extinguir todos os feriados religiosos, mudar o nome de milhares de ruas e municípios e, ad reductio absurdum, demolir simbolos e imagens, a exemplo, que identificam muitas das cidades brasileiras, incluindo-se no cotidiano popular de homens e mulheres estratificados em variados segmentos religiosos. Ao meu sentir, as pessoas que tentam eliminar os símbolos religiosos têm, elas sim, dificuldade de entender e respeitar a diversidade religiosa. Então, valendo-se de uma interpretação parcial da laicidade do Estado, passam a querer eliminar todo e qualquer símbolo, e por consequência, manifestação de religiosidade. Isso sim é que é intolerância.

    Embora cristão, as doutrinas católicas diferem em muitos pontos do que eu creio, mas se foram católicos que começaram este país, me parece mais que razoável respeitar que a influência de sua fé esteja cristalizada no país. Querer extrair tais símbolos não só afronta o direito dos católicos conviverem com o legado histórico que concederam a todos, como também a história de meu próprio país e, portanto, também minha. Em certo sentido, querer sustentar que o Estado é laico para retirar os santos e Cristos crucificados não deixaria de ser uma modalidade de oportunismo.

    Todos se recordam do lamentável episódio em que um religioso mal formado chutou uma imagem de Nossa Senhora na televisão. Se é errado chutar a imagem da santa, não é menos agressivo querer retirar todos os símbolos. Não chutar a santa, mas valer-se do Estado para torná-la uma refugiada, uma proscrita, parece-me talvez até pior, pois tal viés ataca todos os símbolos de todas as religiões, menos uma. Sim, uma: a “não religião”, e é aqui que reside meu principal argumento contra a moda de se atacar a presença de símbolos religiosos em locais públicos.

    A recusa à existência de Deus, a qualquer religião ou forma de culto a uma divindade não é uma opção neutra, mas transformou-se numa nova modalidade religiosa. Se por um lado temos um ateísmo como posição filosófica onde não se crê na(s) divindade(s), modernamente tem crescido uma vertente antiteísta. Para tentar definir melhor essa diferença, vale dizer que se discute se budistas e jainistas seriam ou não ateus, por não crerem em divindades além daquela representada pela própria pessoa ou grupo delas, no entanto jamais se discutiria se um budista é ou não antiteísta. É inegável reconhecer-se que esta nova vertente religiosa tem seus profetas, seus livros sagrados e dogmas. Como a maior parte das religiões, faz proselitismo, busca novos crentes (que nessa vertente de fé, são os “não crentes”, “not believers”, os que optam por um credo que crê que não existe Deus algum).

    É conhecida a campanha feita pelos ateus nos ônibus de Londres. A British Humanista Association colocou o anúncio There’s probably no God. Now stop worrying and enjoy your life (“Provavelmente Deus não existe. Então, pare de se preocupar e aproveite sua vida”) nas laterais de ônibus britânicos, ao lado dos tradicionais anúncios religiosos. Repare-se que o “provavelmente” demonstra educação, senso político ou cortesia, e que nos cartazes nos ônibus todas as letras estavam em caixa alta, eliminando a discussão sobre se deveriam escrever Deus com “D” ou “d”. Mas nem todos os ateus são educados e cordatos, embora uma grande quantidade deles, grande maioria eu creio, o seja.

    Assim como o Protestantismo foi uma reação aos que não estavam satisfeitos com o catolicismo romano, o antiteísmo, ou ateísmo militante, que vemos hoje, é uma reação dos que estão insatisfeitos com a religião. Interessante perceber que esta linha de ateus é intolerante e, como foi historicamente comum em todas as religiões iniciantes ou pouco amadurecidas, mostrou-se virulenta e desrespeitosa no ataque às demais. Esta nova religião, a “não religião”, ao invés de assumir o controle ou titularidade da representação divina, optou por entender que não existe Deus nenhum. Em certo sentido, ao eliminar a possibilidade de um ser superior, assumiu o homem como o ser superior. Aqui o homem que professa tal tipo de crença não é mais o representante de Deus, mas o próprio ser superior. Nesse passo, a nova religião tem outra penosa característica das religiões pouco amadurecidas, consistente na arrogância e prepotência de seus seguidores, apenas igualada pelo desprezo à capacidade intelectual dos que não seguem a mesma linha de pensamento.

    Assim, enquanto existe um ateísmo que simplesmente não crê e que demonstra as razões disso em um ambiente de respeito e diversidade, vemos crescer também um outro ateísmo, agressivo, que não apenas não livrou o mundo dos males da religião, mas também passou a reprisá-los.

    O principal profeta dessa religiosidade invertida (mas nem por isso deixando de ser uma manifestação religiosa) é Richard Dawkins, autor do livro “Deus, um Delírio”. Ele está envolvido, como qualquer profeta, na profusão de suas ideias, fazendo palestras e livros, concedendo entrevistas e fazendo suas “cruzadas”. A Campanha Out (em inglês: Out Campaign) é uma iniciativa proselitista em favor do ateísmo, tendo até mesmo um símbolo, o “A” escarlate. A campanha atualmente produz camisetas, jaquetas, adesivos, e broches vendidos pela loja online, e os fundos se destinam à Fundação Richard Dawkins para a Razão e a Ciência (RDFRS). Algo que não deixa de ser muito semelhante às campanhas financeiras típicas de outras manifestações de fé.

    Como alguns profetas religiosos, Dawkins não poupa pessoas ilustres de credos concorrentes. Por exemplo, em seu livro, ele diz sobre Madre Teresa o seguinte: “(...) Como uma mulher com um juízo tão vesgo pode ser levada a sério sobre qualquer assunto, quanto mais ser considerada seriamente merecedora de um Premio Nobel? Qualquer um que fique tentado a ser engabelado pela hipócrita Madre Teresa (...)” (pág. 375).

    Naturalmente, entendo que Dawkins e seus seguidores têm todo o direito de pensarem e professarem qualquer fé, mesmo que seja a fé na inexistência de Deus e nos malefícios da religião. Contudo, só porque não creem em um Deus ou vários dEles, não estão menos sujeitos aos valores, princípios e leis que, se não nos obrigam à fraternidade, ao menos nos impõem a respeitosa tolerância. Outra coisa que não se pode é identificar em qualquer Deus ou símbolo religioso um inimigo e se tentar cooptar a laicidade do Estado para proteger sua própria linha de pensamento sobre o assunto religião.

    Ao meu ver, discutir os símbolos religiosos é mais fácil do que enfrentar a distribuição de renda, a fome, injustiça e a desigualdade social. Não nego a importância do assunto, mas acharia cômico se não fosse trágico que as pessoas se ofendam com uma cruz o bastante para acionar o Estado e não o façam diante de outras situações evidentemente mais prementes. Talvez mexer com os religiosos seja mais simples, divertido e seguro, mas certamente não demonstra uma capacidade superior de escolher prioridades. Portanto, parece conveniente lembrar que católicos, judeus, evangélicos, espíritas e muçulmanos, e bom número de ateus também, gastam suas energias ajudando aos necessitados. Tenho a esperança de que nas discussões haja mais coerência e menos “pirotecnia” e “perfumaria” de quem discute o sexo, digo, a existência dos anjos em vez de enfrentar os verdadeiros problemas de um país que, salvo raras e desonrosas exceções, é palco de feliz tolerância religiosa.

    A eliminação dos símbolos religiosos atende aos desejos de uma vertente religiosa perfeitamente identificada, e o Estado não pode optar por uma religião em detrimento de outras. A solução correta para a hipótese é tolerar e conviver com as diversas manifestações religiosas. Assim, os carros poderão continuar a falar em Jesus, Buda, Maomé, Allan Kardec ou São Jorge sem que ninguém deva se ofender com isso. Ou, se isso ocorrer, que ao menos não receba o beneplácito de um Estado que optou por ficar equidistante das inúmeras, infinitamente inúmeras, formas de se pensar o tema fé. Não ter fé e não apreciar símbolos religiosos é apenas uma delas, respeitabilíssima, mas apenas uma delas.

    Por fim, acaso fosse possível ser feita uma opção, não poderia ser pela visão da “minoria”, mas da “maioria”. Talvez essa afirmação choque o leitor. Dizer que se for para optar, que seja pela “maioria” choca, pois o conceito de “respeito às minorias” já está razoavelmente assimilado. Mas também deveria chocar a ditadura da minoria, a tirania dos que se transformam em vítimas ao invés de evoluírem o suficiente para ver nos símbolos religiosos não uma ofensa, mas um direito, e entender que os que já estão por aí, nas ruas, repartições e monumentos são apenas uma consequência da nossa longa formação histórica e cultural.

    Em suma, espero que deixem este crucifixo, tão católico apostólico romano quanto é, exatamente onde ele está. Excluir símbolos é fazer o Estado optar por quem não crê. A laicidade aceita todas as religiões ao invés de persegui-las ou tentar reduzi-las a espaços privados, como se o espaço público fosse privilégio ou propriedade de quem se incomoda com a fé alheia. Eu, protestante e empedernidamente avesso às imagens esculpidas, as verei nas repartições públicas e saudarei aos católicos, que começaram tudo, à liberdade de culto e de religião, à formação histórica desse país e, mais que tudo, ao fato de viver num Estado laico, onde não sou obrigado a me curvar às imagens, mas jamais seria honesto (ou laico, ou cristão, ou jurídico) me incomodar com o fato de elas estarem ali.

    William Douglas juiz federal, professor, escritor, mestre em Direito - UGF, Especialista em Políticas Públicas e Governo – EPPG/UFRJ. (e evangélico).