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terça-feira, 9 de junho de 2015

Trans crucificada na Parada Gay




A trans crucificada na Parada, ou a blasfêmia que não existe

por João Marinho

É duro ser óbvio.


Mas uma performance artística como a da Viviany utilizou um forte simbolismo que não é cristão, é universal: a crucificação, de Cristo, como forma de martírio dos excluídos.

Esse simbolismo aparece ao longo de toda a história ocidental nas artes, na filosofia e em numerosas outras instâncias – e nunca foi monopólio das igrejas. Aparece até em países não ocidentais e não cristãos.

É tão correto e universal utilizar esse simbolismo quanto utilizar os simbolismos trazidos pela mitologia grega, por exemplo – que, igualmente, estão presentes nas artes, na filosofia, na psicologia e, vejam só, até nas produções de pensadores cristãos!

Será que Freud precisou ser um grego converso e consultar o Oráculo de Delfos para fazer referência a Eros e Psique e até nomear alguns elementos da psicanálise assim?

Será que, quando você chama uma pessoa de "Judas", não está fazendo uma referência ao simbolismo da traição, mas dizendo categoricamente que está prestes a ser morto numa cruz porque aquela pessoa acabou de vender você por algumas moedas de prata (boa sorte em encontrar a pena de cruz em pleno século 21, aliás)?

O que é cristão é tão-somente a crença no sacrifício de Cristo como redentor dos pecados e a natureza divina de Cristo. Assim mesmo, nem esta última é considerada correta por todos: as testemunhas de Jeová, por exemplo, acreditam na redenção dos pecados por meio do sacrifício, mas rejeitam a divindade de Cristo.

Com esta parte religiosa, a Viviany não mexeu em nada. Por caso, ela se posicionou como uma nova Salvadora da humanidade?

Ela pregou um novo Evangelho? Recrutou doze novas apóstolas (dica: não é autodeclarado "apóstolo", por acaso, o organizador da "Marcha para Jesus"? A se pensar...)?

Por acaso, ela disse que estava, na Parada, crucificada para salvar o mundo do pecado? Por acaso, ao menos, ela disse que o sacrifício de Cristo nada valia e que o dela é que deveria ser considerado em seu lugar?

Não.

E ela só poderia ser considerada blasfema, pelos dogmas cristãos, se tivesse dito qualquer dessas coisas – e abram parênteses, porque ser blasfema é direito de liberdade de expressão também.

Viviany, no entanto, não mexeu com nenhum desses dogmas. Fez uma representação artística, buscando inspiração no simbolismo universal da morte de Cristo como martírio dos excluídos da mesma forma que MILHARES de pensadores, artistas, filósofos e religiosos, até de outras religiões, já fizeram antes – e utilizou esse forte símbolo para fazer uma denúncia social contra a intolerância religiosa que vitima LGBTs todos os dias.

Ora, não precisa "ser mais cristão" que ninguém para fazer uso desse simbolismo. Não precisa ser "mais cristão que todos os outros" para entender esse simbolismo que, como acabei de mencionar, foi utilizado até por sábios de outros credos.

O espanto, isso sim, é que os próprios cristãos não entendam o uso do símbolo e tratem como "blasfêmia" aquilo que nem mesmo sua doutrina autoriza a tratar como.

E se vamos falar de imposição, sinceramente, quem precisa rever conceitos são os cristãos.

Defendemos aqui uma representação simbólica da morte de Cristo e a denúncia social que ela traz. Não estamos rejeitando o direito de os cristãos exercitarem sua fé por causa dessa defesa.

Já você, caro cristão fundamentalista, critica a manifestação da transexual, dizendo que "foi desrespeitosa", "agressiva", porque a crucificação é "santa e superior".

Ora, eu não acredito que o simbolismo da crucificação é "santo e superior" – e, no entanto, defendo o direito de utilizá-lo tanto quem acredita que é quanto quem não acredita que é.

você defende que quem não acredita na mesma "santidade" que você se abstenha de fazê-lo, apenas porque você e sua comunidade acreditam nela.

Quem é que está impondo seu credo a outros mesmo?

E se quiserem prova do que digo, leiam o que diz a própria Viviany Beleboni: http://www.revistaforum.com.br/blog/2015/06/tudo-bem-encenar-a-paixao-de-cristo-mas-quando-e-uma-travesti-nao-pode-nao-e/

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Quanto aos gays que fazem coro a Feliciano e afins, só tenho a dizer uma coisa: lamentável!

Vira e mexe, aparecem com aquele discurso de que a "Parada perdeu o propósito", de que "é só festa e deveria ser política", que deveria "reivindicar em fez de tocar música e haver pessoas fazendo sexo".

Aí, quando alguém faz uma denúncia política e social por meio da arte e de um símbolo forte e universal, reclamam porque "foi desrespeitoso" e "há outros meios de exigir respeito"?

Querem um dica? Vão, então, à Parada LGBT do próximo ano e proponham esses "outros meios". Garanto que nós outros, e a Viviany, muito nos aproveitaríamos de suas iluminadas sugestões.

sexta-feira, 26 de julho de 2013

Porque investem as prefeituras em eventos gays?


Pink money com autoestima

Sim, gays têm dinheiro, mas pode não ser tanto assim –
e, principalmente, não deve ser para todo mundo!

por João Marinho

Dois milhões e duzentos mil reais. Informados por seu diretor executivo, Nelson Matias, em uma reportagem publicada no portal iG e assinada por Pedro Carvalho, os custos da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo, cuja 17ª edição foi realizada em 2 de junho de 2013, impressionam – e se tornaram fonte de crítica por parte de setores conservadores e religiosos tradicionalmente avessos a eventos com foco no público de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais.
Isso porque, do total de R$ 2,2 milhões, a Prefeitura de São Paulo bancou, ainda segundo a reportagem, R$ 1,6 milhão. Foi o que bastou para que religiosos e conservadores reclamassem, em sites da imprensa, evangélicos e afins, da “conta absurda” a ser paga por dinheiro público, que deveria ser usado para o bem de todos – e não de uma “minoria”.

Lucro alto
A Parada de São Paulo, como outras pelo Brasil e pelo mundo, surgiu espontânea, fruto da mobilização de ativistas LGBTs. Apenas posteriormente, passou a fazer parte de calendários oficiais do poder público. A verdade nua e crua, porém, é que não existe almoço grátis – e isso se aplica ao apoio dos governos.
Dito isso, é necessário considerar que os custos da Parada de São Paulo, tradicionalmente a maior do País, representam apenas a ponta do iceberg – e o que está debaixo dela se reverte, sim, em benefícios extremos para a população e para o poder público.
Sem levar em conta que os gastos da Prefeitura são com infraestrutura, o que já os justificaria, a mesma reportagem do iG informa que, segundo dados da São Paulo Turismo (SPTuris), 39,5% do público da Parada é de turistas, que gastam, em média, R$ 1.272 no fim de semana do evento.
Bem, 39,5% de 600 mil pessoas (estimativa do público segundo a Polícia Militar no ano de 2013) ou 39,5% de 220 mil pessoas (estimativa do Datafolha) resultam, respectivamente, em 237 mil pessoas e 86,9 mil pessoas. Cada uma gastando, em média, R$ 1.272, isso significa que os turistas deixaram aproximadamente, na cidade de São Paulo, quase R$ 301,5 milhões, ou, se apelarmos para os números de público do Datafolha, mais de R$ 110,5 milhões.
Com esse retorno – dinheiro que os turistas gastam em hotéis, alimentação, transporte, lojas, etc. –, quem, em sã consciência, não gastaria R$ 1,6 milhão no evento? Em termos comparativos, isso significa que, para cada R$ 1 gasto pela Prefeitura de São Paulo no evento, são retornados cerca de outros R$ 187 que ficam na cidade, ou mais de R$ 68, seguindo as estatísticas do Datafolha.
Se a Parada fosse uma poupança e o dinheiro público fosse ali aplicado, ela renderia, em um fim de semana, 18.741,50% de juros, considerando o público estimado pela PM, ou 6.808,55%, considerando o público estimado pelo Datafolha. Isso falando apenas dos turistas, sem levar em conta o dinheiro que os próprios habitantes da cidade e municípios próximos gastam, em transporte, comida, compras.
Posso estar errado, mas acredito que nenhum banco, no Brasil ou em outros países, forneça taxas de juros tão formidáveis em sua carteira de investimentos. Portanto, em vez de reclamar porque o poder público gastou R$ 1,6 milhão, por que não agradecer pelo verdadeiro investimento que ele fez?
Parte dos outros R$ 600 mil não bancados pela Prefeitura veio de empresas públicas, como Caixa e Petrobras. Não foi possível definir, para este artigo, quanto do dinheiro deixado em São Paulo é recolhido em impostos federais, mas a julgar por números tão expressivos e impostos tão universais quanto os brasileiros, não soa imprudente dizer que o governo federal recebe, também, um gordo quinhão.

Marginalidade e baixa autoestima
Os números impressionantes se repetem em outra cidade com uma tradição de eventos LGBTs: Juiz de Fora, em Minas Gerais, que realiza sua 36ª edição do Miss Brasil Gay em agosto/2013 e seu igualmente tradicional Rainbow Fest, no mesmo mês. As últimas estatísticas sobre o Rainbow, datadas de 2006, mostram que, naquele ano, 10 mil turistas injetaram nada mais, nada menos que R$ 4 milhões na cidade. Estratosféricas, novamente.
Os dados de São Paulo e Juiz de Fora parecem fazer jus à fama do pink money. A expressão é oriunda do final da década de 1970, nos Estados Unidos. Na época, grupos de direitos de homossexuais não dispunham de patrocinadores para suas ações e tiveram uma ideia brilhante: em um dia de protesto nacional, toda nota de dólar que passasse na mão de um gay deveria ser riscada com uma caneta rosa, no canto. Isso mostraria o potencial que os patrocinadores estavam perdendo.
De lá para cá, cresceu o interesse no “dinheiro cor-de-rosa”, que movimentaria mercados bilionários envolvendo a população LGBT: respectivamente, cerca de US$ 100 bilhões anuais no Brasil e US$ 800 bilhões nos Estados Unidos, segundo reportagem publicada há dois anos na revista IstoÉ Dinheiro. O texto ainda se refere a uma estatística do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), segundo a qual essa população gasta, em média, 30% mais que seus pares heterossexuais em consumo e lazer.
No entanto, toda essa “orgia financeira” tem três lados que são bem negativos.
O primeiro e mais premente é que, no Brasil, não se vê as empresas – sobretudo as grandes marcas – envolvidas fortemente na conquista desse público. Com uma visão embotada de negócios e com receios extremados de “desagradar” a população conservadora, LGBTs permanecem, para essas marcas, relegados a uma posição marginal e oculta.
Se, nos Estados Unidos, companhias como Apple e Google se envolvem em campanhas pró-diversidade sexual, no Brasil, são comuns comerciais polêmicos, como o da marca de cuecas Lupo – que, se não pode ser considerado homofóbico per se, ao menos é de gosto duvidoso e flertou com uma ideologia, no mínimo, questionável. Na Parada de São Paulo, para manter o exemplo, a única empresa privada a adquirir uma cota de patrocínio foi a marca de camisinhas Olla.
Os empresários com negócios voltados diretamente aos LGBTs não fazem mais bonito. Tirando honrosas exceções, investem pouco pelo dinheiro que recebem e falham no treinamento de funcionários, sobretudo seguranças. Casos de espancamentos homofóbicos em boates GLS – absurdo! – têm tomado os jornais ultimamente. Finalmente, o poder público tampouco faz jus ao que recebe. Como se explica o desbotado combate à homofobia em cidades que recebem tantos milhões de reais do bolso do público LGBT?
O segundo lado diz respeito ao fato de que a tese do pink money esconde uma questão social importante: não; o público LGBT não é necessariamente endinheirado, branco, de classe média e disposto a gastar centenas ou milhares de reais por noite. Em termos estatísticos, se, no Brasil, a maioria da população é de classe média-baixa (a atual classe C) a classes menos abastadas, isso se reflete entre os LGBTs. Especialmente no caso do/as transexuais e travestis, tão maltratados/as que, não raro, são vítimas da evasão escolar, com oportunidades profissionais mais restritas.
Essas pessoas têm de ser tratadas com respeito – não por causa do dinheiro que podem gastar, mas por seu lugar como cidadãos e cidadãs. O pink money pode nublar a existência de demandas sociais, reais, objetivas e prementes para a população LGBT. Ora, se está endinheirada, o que falta a essa população? Na verdade, falta tudo, a começar pelo combate à homofobia/transfobia, passando por políticas públicas de prevenção à violência e promoção da saúde e de promoção da autoestima. Gay morto não gasta. Gay agredido não consome: deixa o salário no hospital – e tanto pior quando se está frente à realidade de que não há tanto dinheiro assim no bolso.
Finalmente, um terceiro lado ecoa uma questão que acabamos de mencionar: a autoestima ela-mesma. Cercados por uma cultura homofóbica e sofrendo de preconceito internalizado, LGBTs estão ainda longe de serem “craques” nessa faceta tão importante para o ser humano. É comum que “encontrem” desculpas para a homofobia de terceiros, especialmente quando compram e consomem.
Se, nos Estados Unidos, boicotes promovidos pela GLAAD (antes, Gay & Lesbian Alliance Against Defamation) são efetivos e temidos pelas marcas, no Brasil, consumidores LGBTs se esmeram em “justificar” comportamentos discriminatórios de empresas e comerciais, mesmo quando patentes. Pior: às vezes, sequer se preocupam em investir em lugares que os respeitam.
Quem nunca teve um amigo ou amiga que se recusa a ir a um lugar porque “é gay demais” ou “tem muito ‘viado’”? Ou que, ao presenciar um flagrante desrespeito em um ambiente comercial, como em um restaurante que tenta impedir uma simples troca de beijos homoafetiva (“selinho”), concorda com o estabelecimento, em vez de se colocar ao lado do consumidor injustiçado que, no limite, é gay como ele?
É preciso, portanto, ter em mente que o pink money tem, sim, sua relevância, mas que ele, por si só, é insuficiente para conquistar cidadania. Esta se conquista por meio de luta política, de mobilização social – e, sobretudo, por meio de um intenso e interno trabalho de autoestima. Inclusive na hora de se recusar a deixar parte do salário, normalmente ganho a duras penas e em ambientes nem sempre liberais e libertários, nas mãos de quem não merece.

Pense nisso. 
 

 
Texto originalmente publicado no Rainbow Guia do 16º Juiz de Fora Rainbow Fest.
 

Referências: