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sábado, 15 de novembro de 2014

Intersecção narrativa

INTERSECÇÃO NARRATIVA


Então, você é jornalista e recebeu do seu editor um tema sobre o qual não sabe “lhufas”, ou então o tema é tão polêmico e cheio de nuances que você até o conhece parcialmente, mas não tem a menor ideia de por onde começar – e muito menos aonde chegar.

Sua saída pode estar numa técnica de reportagem que chamo carinhosamente de INTERSECÇÃO NARRATIVA. Essa técnica é bastante útil para solucionar as dificuldades acima e especialmente em reportagens que enfocam comportamentos e tendências, em que a vivência dos entrevistados é sobremaneira importante.

Para funcionar, a intersecção narrativa costuma necessitar de uma técnica-irmã, em um primeiro passo: a ENTREVISTA AUTOBIOGRÁFICA. A ideia é bastante simples. Digamos que você quer fazer uma reportagem sobre um determinado grupo, por exemplo, praticantes do bareback, para ficarmos no tema do Entre Homens de hoje, 06/12.

É um caso em que a reportagem enfoca comportamentos e em que a vivência dos entrevistados será o suprassumo do texto: o que eles têm a dizer sobre a prática e sobre a experiência que tiveram no grupo? Por que praticam? Como veem a si mesmos? Esses elementos serão, de fato, os mais importantes do texto.

A ideia de utilizar a entrevista autobiográfica é explorar, EM PROFUNDIDADE, tudo que for possível sobre a vida dos entrevistados em relação àquele tema da reportagem. Não pode ter medo de perguntar e, às vezes, nem de fazer perguntas desconfortáveis.

O interessante, porém, é que o jornalista não sabe aonde isso vai dar. Geralmente, começam-se as entrevistas com uma pergunta simples do tipo “quando você começou a praticar o bareback?” – e, a partir daí, as perguntas vão se desenrolando de acordo com as respostas do entrevistado e do que ele conta de si mesmo. Toda a entrevista vai depender, portanto, do que o entrevistado disser, o que vai demandar uma boa técnica para o jornalista deixá-lo à vontade e/ou extrair informações relevantes e “escondidas”.

Após realizar um certo número de entrevistas, vem a fase dois, que é a intersecção narrativa propriamente dita. Se o trabalho de entrevistar foi bem feito, e sendo o tema um só, as histórias de vida e experiência narradas pelos entrevistados fatalmente terão pontos em comum, ou seja, as intersecções.

O papel do jornalista, aqui, é identificar essas intersecções: os pontos em que as narrativas “se cruzam” e, a partir daí, separar os cruzamentos mais frequentes e importantes dos menos frequentes e dispensáveis.

Uma vez feito isso, o jornalista “pesca” os mais importantes – em geral, os “cruzamentos” mais densos – e, em cima deles, estrutura sua reportagem. O texto, portanto, vai fluir pelos pontos em comum, pelos cruzamentos das entrevistas. A ordem de qual ponto abordar antes ou depois dependerá do jornalista e de critérios editoriais.

Se tudo for bem feito, no fim, teremos uma reportagem abrangente, que dará conta dos principais tópicos vividos e problematizados pelos praticantes de bareback – e, ao mesmo tempo, um retrato em larga escala para o público-leitor.
Na imagem, temos traduzido o que acabei de explicar.

Observe que temos seis entrevistados: Renata, João, José, Maria, Cláudia e Henrique. As entrevistas partem de um início comum, o quadrado preto que é a pergunta simples a que me referi no sexto parágrafo. No caso, “quando você começou a praticar o bareback?”.

A partir daí, as histórias contadas e as entrevistas vão seguindo por mares nunca dantes navegados e totalmente de acordo com o que cada entrevistado for dizendo. São as linhas tortuosas dos nomes.

Na fase dois, identificamos os pontos em que as narrativas se cruzam: os círculos pretos. Indo de círculo em círculo, estruturamos a reportagem. A técnica pode ser também adotada no modo PROGRESSIVO. Se um tema se repetir, por exemplo, em três entrevistas, podemos “forçá-lo”, perguntando diretamente sobre ele para o quarto entrevistado.

Obviamente, a intersecção narrativa é bem útil, mas tem suas desvantagens. Uma delas é que ela depende muito da capacidade de entrevistar do repórter e também da colaboração dos entrevistados. Se falhar aqui, haverá poucos “cruzamentos” nas narrativas e, portanto, poucos pontos por onde estruturar a reportagem.

Outra dificuldade é a necessidade de ganhar a confiança do entrevistado. Com efeito, muitos deles vão estranhar uma entrevista que, a rigor, “parece que não vai chegar a lugar algum”. Eu já tive essa dificuldade com alguns deles. A pessoa pode ficar desconfortável por contar coisas de si sem saber o propósito e percebendo que o jornalista não o sabe também – porque, afinal, não sabemos mesmo até “puxarmos” os cruzamentos: fato. Cabe aí, então, um bom jogo de cintura do jornalista para explicar o plano de reportagem para o entrevistado.

Finalmente, a técnica pode ser bem trabalhosa. Identificar os pontos em comum, ou seja, os “cruzamentos” entre as narrativas, a frequência de cada um deles a fim de selecioná-los e estruturar a reportagem de uma forma lógica pressupõe ler com calma e até mais de uma vez cada entrevista, lançar mão de anotações e até mesmo escrever os tópicos antes de descrevê-los, num planejamento prévio do texto (“primeiro, vou falar disso, depois, daquilo; então, concluo com aquilo outro antes de fazer o contraponto com aquela outra coisa”). Dá trabalho. O resultado final, porém, vale a pena.

A técnica, é claro, pode ser usada em outros tipos de texto, por quem não é jornalista e também para reportagens que não sejam de comportamento. Nesse caso, em vez de as entrevistas serem autobiográficas, serão centradas no conhecimento técnico ou acadêmico do entrevistado sobre o tema proposto. Por exemplo: se o tema é câncer, perguntar o máximo sobre isso aos médicos e especialistas a serem entrevistados.