Pink money com autoestima
Sim,
gays têm dinheiro, mas pode não ser tanto assim –
e,
principalmente, não deve ser para todo mundo!
por
João Marinho
Dois milhões e duzentos mil
reais. Informados por seu diretor executivo, Nelson Matias, em uma reportagem
publicada no portal iG e assinada por
Pedro Carvalho, os custos da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo, cuja 17ª
edição foi realizada em 2 de junho de 2013, impressionam – e se tornaram fonte
de crítica por parte de setores conservadores e religiosos tradicionalmente
avessos a eventos com foco no público de lésbicas, gays, bissexuais, travestis
e transexuais.
Isso porque, do total de R$ 2,2
milhões, a Prefeitura de São Paulo bancou, ainda segundo a reportagem, R$ 1,6
milhão. Foi o que bastou para que religiosos e conservadores reclamassem, em
sites da imprensa, evangélicos e afins, da “conta absurda” a ser paga por
dinheiro público, que deveria ser usado para o bem de todos – e não de uma
“minoria”.
Lucro alto
A Parada de São Paulo, como
outras pelo Brasil e pelo mundo, surgiu espontânea, fruto da mobilização de
ativistas LGBTs. Apenas posteriormente, passou a fazer parte de calendários
oficiais do poder público. A verdade nua e crua, porém, é que não existe almoço
grátis – e isso se aplica ao apoio dos governos.
Dito isso, é necessário
considerar que os custos da Parada de
São Paulo, tradicionalmente a maior do País, representam apenas a ponta do iceberg – e o que está debaixo dela se
reverte, sim, em benefícios extremos para a população e para o poder público.
Sem levar em conta que os gastos
da Prefeitura são com infraestrutura,
o que já os justificaria, a mesma reportagem do iG informa que, segundo dados da São Paulo Turismo (SPTuris), 39,5%
do público da Parada é de turistas, que gastam, em média, R$ 1.272 no fim de
semana do evento.
Bem, 39,5% de 600 mil pessoas
(estimativa do público segundo a Polícia Militar no ano de 2013) ou 39,5% de
220 mil pessoas (estimativa do Datafolha) resultam, respectivamente, em 237 mil
pessoas e 86,9 mil pessoas. Cada uma gastando, em média, R$ 1.272, isso
significa que os turistas deixaram aproximadamente, na cidade de São Paulo,
quase R$ 301,5 milhões, ou, se apelarmos para os números de público do
Datafolha, mais de R$ 110,5 milhões.
Com esse retorno – dinheiro que
os turistas gastam em hotéis, alimentação, transporte, lojas, etc. –, quem, em
sã consciência, não gastaria R$ 1,6 milhão no evento? Em termos comparativos,
isso significa que, para cada R$ 1 gasto pela Prefeitura de São Paulo no
evento, são retornados cerca de outros R$ 187 que ficam na cidade, ou mais de
R$ 68, seguindo as estatísticas do Datafolha.
Se a Parada fosse uma poupança e
o dinheiro público fosse ali aplicado, ela renderia, em um fim de semana,
18.741,50% de juros, considerando o público estimado pela PM, ou 6.808,55%,
considerando o público estimado pelo Datafolha. Isso falando apenas dos
turistas, sem levar em conta o dinheiro que os próprios habitantes da cidade e
municípios próximos gastam, em transporte, comida, compras.
Posso estar errado, mas acredito
que nenhum banco, no Brasil ou em outros países, forneça taxas de juros tão
formidáveis em sua carteira de investimentos. Portanto, em vez de reclamar
porque o poder público gastou R$ 1,6 milhão, por que não agradecer pelo
verdadeiro investimento que ele fez?
Parte dos outros R$ 600 mil não
bancados pela Prefeitura veio de empresas públicas, como Caixa e Petrobras. Não
foi possível definir, para este artigo, quanto do dinheiro deixado em São Paulo
é recolhido em impostos federais, mas a julgar por números tão expressivos e
impostos tão universais quanto os brasileiros, não soa imprudente dizer que o
governo federal recebe, também, um gordo quinhão.
Marginalidade e baixa autoestima
Os números impressionantes se repetem
em outra cidade com uma tradição de eventos LGBTs: Juiz de Fora, em Minas
Gerais, que realiza sua 36ª edição do Miss Brasil Gay em agosto/2013 e seu
igualmente tradicional Rainbow Fest, no mesmo mês. As últimas estatísticas
sobre o Rainbow, datadas de 2006, mostram que, naquele ano, 10 mil turistas
injetaram nada mais, nada menos que R$ 4 milhões na cidade. Estratosféricas,
novamente.
Os dados de São Paulo e Juiz de
Fora parecem fazer jus à fama do pink
money. A expressão é oriunda do final da década de 1970, nos Estados
Unidos. Na época, grupos de direitos de homossexuais não dispunham de
patrocinadores para suas ações e tiveram uma ideia brilhante: em um dia de
protesto nacional, toda nota de dólar que passasse na mão de um gay deveria ser
riscada com uma caneta rosa, no canto. Isso mostraria o potencial que os
patrocinadores estavam perdendo.
De lá para cá, cresceu o
interesse no “dinheiro cor-de-rosa”, que movimentaria mercados bilionários
envolvendo a população LGBT: respectivamente, cerca de US$ 100 bilhões anuais
no Brasil e US$ 800 bilhões nos Estados Unidos, segundo reportagem publicada há
dois anos na revista IstoÉ Dinheiro.
O texto ainda se refere a uma estatística do Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE), segundo a qual essa população gasta, em média, 30% mais
que seus pares heterossexuais em consumo e lazer.
No entanto, toda essa “orgia
financeira” tem três lados que são bem negativos.
O primeiro e mais premente é que,
no Brasil, não se vê as empresas – sobretudo as grandes marcas – envolvidas
fortemente na conquista desse público. Com uma visão embotada de negócios e com
receios extremados de “desagradar” a população conservadora, LGBTs permanecem,
para essas marcas, relegados a uma posição marginal e oculta.
Se, nos Estados Unidos, companhias
como Apple e Google se envolvem em campanhas pró-diversidade sexual, no Brasil,
são comuns comerciais polêmicos, como o da marca de cuecas Lupo – que, se não
pode ser considerado homofóbico per se,
ao menos é de gosto duvidoso e flertou com uma ideologia, no mínimo, questionável.
Na Parada de São Paulo, para manter o exemplo, a única empresa privada a
adquirir uma cota de patrocínio foi a marca de camisinhas Olla.
Os empresários com negócios
voltados diretamente aos LGBTs não fazem mais bonito. Tirando honrosas exceções,
investem pouco pelo dinheiro que recebem e falham no treinamento de
funcionários, sobretudo seguranças. Casos de espancamentos homofóbicos em
boates GLS – absurdo! – têm tomado os jornais ultimamente. Finalmente, o poder
público tampouco faz jus ao que recebe. Como se explica o desbotado combate à
homofobia em cidades que recebem tantos milhões de reais do bolso do público
LGBT?
O segundo lado diz respeito ao
fato de que a tese do pink money
esconde uma questão social importante: não; o público LGBT não é
necessariamente endinheirado, branco, de classe média e disposto a gastar
centenas ou milhares de reais por noite. Em termos estatísticos, se, no Brasil,
a maioria da população é de classe média-baixa (a atual classe C) a classes
menos abastadas, isso se reflete entre os LGBTs. Especialmente no caso do/as
transexuais e travestis, tão maltratados/as que, não raro, são vítimas da
evasão escolar, com oportunidades profissionais mais restritas.
Essas pessoas têm de ser tratadas
com respeito – não por causa do dinheiro que podem gastar, mas por seu lugar
como cidadãos e cidadãs. O pink money
pode nublar a existência de demandas sociais, reais, objetivas e prementes para
a população LGBT. Ora, se está endinheirada, o que falta a essa população? Na
verdade, falta tudo, a começar pelo combate à homofobia/transfobia, passando
por políticas públicas de prevenção à violência e promoção da saúde e de
promoção da autoestima. Gay morto não gasta. Gay agredido não consome: deixa o
salário no hospital – e tanto pior quando se está frente à realidade de que não
há tanto dinheiro assim no bolso.
Finalmente, um terceiro lado ecoa
uma questão que acabamos de mencionar: a autoestima ela-mesma. Cercados por uma
cultura homofóbica e sofrendo de preconceito internalizado, LGBTs estão ainda
longe de serem “craques” nessa faceta tão importante para o ser humano. É comum
que “encontrem” desculpas para a homofobia de terceiros, especialmente quando
compram e consomem.
Se, nos Estados Unidos, boicotes
promovidos pela GLAAD (antes, Gay & Lesbian Alliance Against
Defamation) são efetivos e temidos pelas marcas, no Brasil, consumidores LGBTs
se esmeram em “justificar” comportamentos discriminatórios de empresas e
comerciais, mesmo quando patentes. Pior: às vezes, sequer se preocupam em
investir em lugares que os respeitam.
Quem nunca teve um
amigo ou amiga que se recusa a ir a um lugar porque “é gay demais” ou “tem
muito ‘viado’”? Ou que, ao presenciar um flagrante desrespeito em um ambiente
comercial, como em um restaurante que tenta impedir uma simples troca de beijos
homoafetiva (“selinho”), concorda com o estabelecimento, em vez de se colocar
ao lado do consumidor injustiçado que, no limite, é gay como ele?
É preciso, portanto, ter em mente que o pink money tem, sim, sua relevância, mas que ele, por si só, é
insuficiente para conquistar cidadania. Esta se conquista por meio de luta
política, de mobilização social – e, sobretudo, por meio de um intenso e
interno trabalho de autoestima. Inclusive na hora de se recusar a deixar parte
do salário, normalmente ganho a duras penas e em ambientes nem sempre liberais
e libertários, nas mãos de quem não merece.
Pense nisso.
Texto originalmente publicado no Rainbow
Guia do 16º Juiz de Fora Rainbow Fest.
Referências:
http://www.unip.br/ensino/pos_graduacao/strictosensu/comunicacao/download/com_irineuramosribeiro.swf
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