terça-feira, 30 de julho de 2013

Estratégia católica?

Francisco e os gays

por João Marinho

De verdade, penso que nós, LGBTs, devemos ter cuidado com Jorge Mario Bergoglio, atualmente conhecido como papa Francisco. Tenho visto muitos empolgados com suas declarações recentes, de que gays não devem ser marginalizados, e até dizendo que ele “defendeu nossos direitos”.

Na verdade, não defendeu, não.

Na continuação da entrevista, ao falar sobre o “lobby gay” no Vaticano, ele declarou que o problema não era a orientação sexual, mas o “lobby” envolvendo a orientação – e que o problema estava em qualquer “lobby”.

É uma declaração dúbia, que tanto pode ser entendida como uma crítica direta aos bastidores nem sempre limpos da política e do alto escalão vaticano – quanto, mais perigosamente, pode ser entendida como uma “condenação generalista”, de que qualquer “lobby gay” é algo a ser visto com desconfiança.

O problema é que, no Ocidente, a maioria dos países vive em regimes democráticos. A união de grupos em torno de interesses comuns faz parte da democracia e é saudável, como já observava Alexis de Tocqueville em sua obra A Democracia na América, análise do regime norte-americano.

Só que, para os adversários de uma demanda, qualquer união nesse sentido pode ser entendida e referida, negativamente, como “lobby”. Do ponto de vista geral, lobby é a pressão que grupos organizados fazem em cima do poder público para aprovar suas propostas, mas, do ponto de vista restrito e negativo, é a mesma pressão visando a atender a interesses privados, em vez de uma genuína preocupação com a coisa pública.

Seria “lobby” a tentativa LGBT de instituir o casamento homoafetivo, o reconhecimento da identidade de gênero dos/as transexuais e o acesso à cirurgia, a proteção contra a homofobia? Para os adversários, sim, e de forma negativa – afinal, não argumentam eles que são demandas que “atendem somente a uma minoria” e não representam “avanço” para a coisa pública? Ora, se lobby é ruim, como disse Francisco, como é que fica, então, a pressão política LGBT para aprovação de suas demandas?

Pensando assim, a frase de Francisco sobre integrar os gays à sociedade ganha outros ares. Uma vez que ele não vai – e nem pode ir – contra o catecismo oficial da igreja católica, essa integração pode ser entendida, também, do ponto de vista heteronormativo. Vale informar que o catecismo faz diferenciação entre orientação sexual e ato sexual. Uma vez que uma pessoa é homossexual, é sua “cruz” praticar a castidade, segundo o catecismo, pois os atos homossexuais são intrinsecamente desordenados.

A que integração Francisco se referiu, então? Ok, não se pode julgar os gays que buscam a Deus e estes devem ser integrados à sociedade – desde que mantenham a prevalência da heterossexualidade como único caminho digno e desistam de fazer “lobbies” em torno de seus direitos mais fundamentais, contra os quais a igreja católica formalmente se opôs em todos os países em que foram levados à discussão? Garanto que muitos não viram as declarações por esse ângulo – mas vejam o perigo...

É claro que é difícil dizer a real intenção de Francisco sem cair em injustiça ou especulações vazias. No entanto, dado o histórico da igreja católica e a atitude dos últimos dois papas que pude conhecer em vida (Jesus, como tô velha!), os patentemente homofóbicos João Paulo 2º (que vai ser canonizado pelo mesmo Francisco!) e Bento 16, que vociferavam – ainda que disfarçadamente, com voz doce – contra nós outros e nossos direitos até em pronunciamentos de Natal, eu diria que “pôr as barbas de molho” é a coisa mais certa a fazer. Prudência e canja de galinha não fazem mal a ninguém, não é assim?

Também não podemos deixar de ter em mente que, enquanto cardeal, Bergoglio se opôs veementemente à aprovação do casamento gay sob o governo de Cristina Kirchner, na Argentina – e não apenas como religioso, mas incutindo-se na esfera pública para influenciar a política de um Estado laico, o que é sempre perigoso... Um... Lobby? Curioso, né? E não, Bergoglio e Francisco não são duas pessoas diferentes só porque trocou o homem de nome. A encíclica escrita a quatro mãos com Bento 16 reforçou seu histórico de oposição a tais direitos de homossexuais, inclusive – e, mesmo não sendo eu católico, sei perfeitamente que uma encíclica tem mais importância que uma declaração a jornalistas.

Há, porém, ao menos um fato que merece ser analisado positivamente nas declarações de Francisco. O tom com que falou dos homossexuais representou, de fato, uma mudança na abordagem feita por seus antecessores. Enquanto cardeal, diz-se, se opôs ao casamento gay, mas admitiu a união civil. Eu diria que a dubiedade a que me aludi mais atrás, inclusive, não foi fora de propósito.

Francisco está francamente atrás de conter o escape de fiéis, e assim, você pode não ter notado, mas, sob o “manto do amor”, tem reforçado os dogmas católicos. Reza com pastores na assembleia de deus, mas a posição de que a igreja católica é a única onde encontrar a salvação está “positiva e operante” como nunca. O papa, no fim, é pop e bastante inteligente – um excelente garoto-propaganda, que se mostra humilde e conquista simpatia, ao mesmo tempo em que solidifica a ideia de correção e hegemonia de tudo que é dito por sua igreja. Para o bem e para o mal. Isso pode ser percebido na questão dos gays, se minha chave interpretativa estiver correta.

Embora suas declarações possam ser um “morde e assopra”, têm a vantagem, que também não me é casual (ele é inteligente, lembre-se!), de marcar uma diferença entre a forma católica e a forma não católica (em outras palavras, evangélica) de tratar a questão. As reações de Silas Malafaia e Marco Feliciano, respectivamente, à popularidade e ao discurso de humildade do papa e à declaração sobre gays mostram que eles também sentiram isso – e se incomodaram, mesmo negando.

Se o papa estiver mesmo engajado numa “guerra fria” contra as religiões evangélicas – mordendo-as e assoprando-as também –, religiões essas que, via políticos fundamentalistas, têm se tornado uma verdadeira pedra no sapato do Brasil laico, tanto melhor. O inimigo do meu inimigo é meu “amigo”. Entretanto, enquanto LGBTs, precisamos ser maquiavélicos (no sentido de Maquiavel), saber aproveitar esse momento, mas estar cientes de que essa “amizade” vai até à página dois, antes de ir beijar os pés de Sua Santidade. Todo cuidado é pouco: e essencial para que não compremos um cordeiro e terminemos com um lobo nos devorando em casa.

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