As mulheres, a religião, o machismo
por João Marinho
Sempre me perguntei por que as mulheres não são todas ateístas, ou não buscam sua religiosidade em credos que as valorizem, como os relacionados à bruxaria e ao Sagrado Feminino.
Nunca consegui compreender ao certo, por exemplo, mesmo quando eu era evangélico, por que existem mulheres evangélicas, que tão alegremente defendem a submissão feminina no casamento ou o uso do véu (como na Congregação Cristã no Brasil) e mesmo permitem que pastores preguem isso em suas cerimônias de união.
Nunca entendi por que há mulheres católicas, pois, mesmo sabendo que há Maria e as santas, não consigo compreender por que aceitam que a valorização seja dada pela virgindade (Maria era virgem) e participam de uma religião que lhes fecha as portas à liderança por causa de seu sexo.
Nunca compreendi por que há mulheres muçulmanas, que aceitam cobrir todo o corpo para manifestar sua "decência", mas não exigem dos homens a contrapartida dessa "decência": a de que o corpo da mulher não é "território livre" a ser explorado, mas que deve ser respeitado mesmo nu - e se contentam com uma religião que lhes "autoriza", na terra, a dividir seu marido com outras três, contra sua vontade; e, no Paraíso dos heróis, a admitir que o mesmo homem seja agraciado por 70 virgens - e ela?
Nunca entendi por que há mulheres machistas, que ensinam a seus filhos que chorar "não é para homem", que arrancam os cabelos ao vê-los brincando de boneca, mas festejam quando se tornam "pegadores" enquanto analisam milimetricamente o comprimento da saia de suas filhas.
Também sempre me perguntei por que há mulheres lesbofóbicas, bifóbicas e transfóbicas, quando lésbicas, mulheres bissexuais, travestis e mulheres trans tão-somente mostram que o feminino pode ser autossuficiente: seja na busca pelo prazer, sem a necessidade da contrapartida peniana; seja no fato de que o pênis, por si só, presente biologicamente em um corpo, não é suficiente para negar à pessoa esse mesmo feminino.
Nunca entendi por que há mulheres homofóbicas (ou, melhor dizendo, gayfóbicas), que se incomodam com "homens que se comportam como mulheres", sobretudo os efeminados - por que, afinal, o que há de tão errado com o feminino para que homens não possam assimilá-lo para si?
A história da norueguesa que denunciou um estupro em Dubai e acabou presa por indecência (http://tinyurl.com/le9c2bb) mostra bem o lugar reservado a elas em leis e costumes baseados em religiões tão machistas, tão masculinas e tão fechadas ao feminino, religiões que também condenam todas as sexualidades "desviantes" e "desviadas" - e não me venham dizer que "não tem nada a ver com religião", pois em um país majoritariamente islâmico e onde a ideia de laicidade é mais fraca, tem tudo a ver com isso, sim.
No entanto, não é só no Islã que vemos essas barbaridades. Hoje, o Ocidente ainda desrespeita muito suas mulheres, mas inegavelmente sua vida é mais fácil, ou menos difícil, e sofre menos interditos. No entanto, que esteja clara uma coisa: se isso aconteceu, a religião - cristã ou judaica - é a última a quem deve ser dado qualquer reconhecimento, posto que, enquanto pôde, resistiu às mudanças. Ainda resiste, e, via de regra, tenta revertê-las.
O feminismo muito ajudou em denunciar essa sociedade machista. Em lutar por direitos iguais - luta que está longe do fim. No entanto, nunca vamos chegar lá se as mulheres não perceberem que elas também contribuem para o estado machista das coisas. Há feministas que tratam todos os homens como inimigos e todas as mulheres como vítimas, quando há homens que apoiam os direitos femininos e mulheres que se esmeram em reproduzir o discurso antifeminino e misógino e ainda lutam pelo "direito a tê-lo" por "razões morais e religiosas".
Alguém há de argumentar que a dominação do patriarcado tomou conta do corpo e das mentes femininas de tal forma que elas assimilaram essas ideologias. Isso tem fundamento: percebemos isso até em gays homofóbicos. Os outsiders assimilam a ideologia dos estabelecidos e passam a concordar e estimular a própria segregação.
Isso, porém, não retira a parcela de responsabilidade que cabe a essas mulheres, assim como não retira a responsabilidade da homofobia nutrida por gays. Porque, se há uma coisa que aprendemos sobre liberdade é que ela não pode ser imposta. Não se pode obrigar alguém a ser livre. A liberdade tem de ser querida, desejada, almejada e, não raro, conquistada.
Eu me pergunto, inclusive, até que ponto o horror ao estupro não está ligado ao machismo de alguma forma, à ideologia do corpo dominado da mulher e sua valorização a partir da "pureza" e da "virgindade". O estupro seria, portanto, horrendo não apenas por atentar contra o corpo da mulher, mas por atentar contra sua "pureza", pré-exigida pelos machos em busca de parceira.
Não, não nego que o estupro seja um crime hediondo, à medida que atenta contra o corpo e a liberdade violentamente, mas sempre me chamou a atenção que fosse considerado menos grave ou inexistente quando a vítima fosse homem (supostamente "forte" e "dominante"), especialmente tendo a mulher como agressora, ou ainda fosse considerado menos grave ou inexistente quando supostamente oriundo de comportamentos permissivos por parte da mulher-vítima: se ela vai a um baile funk com roupas mais curtas e requebra-se no colo de um rapaz, é como se este "ganhasse" o direito de penetrá-la sem autorização.
Também sempre me chamou a atenção que o comportamento supostamente permissivo por parte da mulher, no usufruto de seu corpo, fosse considerado um diferencial para atestar sua imoralidade e sua impossibilidade de ser considerada vítima ou cidadã. A prostituta que não é explorada por cafetões e cafetinas e escolheu sua profissão não pode ser feliz na campanha do Ministério da Saúde, mesmo sendo tal campanha oriunda de oficinas com apoio de organizações de prostitutas e buscando o resgate de sua autoestima.
Voltando ao caso de Marte Deborah Dalelv, a norueguesa de 24 anos condenada em Dubai, que saiu de uma festa depois de ter bebido e, sob o efeito de álcool, foi estuprada e penetrada contra a vontade - e, após denunciar o crime, foi condenada por atentado à decência, ingestão de álcool e sexo antes do casamento -, me pergunto quantos homens... E mulheres... Ficariam ao lado dela se o sexo tivesse sido consentido.
Quantos e quantas defenderiam que é imoral condenar uma mulher que quis f*der antes do casamento (e uso essa expressão para não amenizar o aspecto tão carnal e visceral de um bom sexo), porque o corpo é dela? Ou será que notaríamos uma mudança no discurso, que passaria a condenar a mulher de olhos claros porque "evidentemente" teria desrespeitado os costumes de Dubai e deveria "ter se comportado"?
Eu aposto minhas fichas na segunda hipótese - e você? Se concordar comigo, havemos de chegar a um ponto comum: o fato de que tantas mulheres reproduzam esse discurso significa que precisamos, urgentemente, de uma Revolução Feminina.
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