quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

A Abordagem Parcial e Desonesta do Programa da Rede Globo “O Sagrado” sobre a Homossexualidade

 

Rev. Márcio Retamero*

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O cristianismo não nasceu com Jesus Cristo. A Igreja nasceu no dia de Pentecostes, em Jerusalém, conforme narra São Lucas no livro de sua autoria, conhecido como Atos dos Apóstolos, logo no segundo capítulo.

Bem cedo a Igreja Cristã se envolveu em divergências étnicas e culturais e é o mesmo S. Lucas que nos informa sobre isto, no mesmo livro, no capítulo 6, quando narra o problema que estava acontecendo entre as viúvas de origem judia e as viúvas de origem grega, portanto, pagã, na distribuição caritativa de alimentos, feita pela Igreja de Jerusalém. Foi para solucionar este problema que a Igreja institui o diaconato.

O mesmo S. Lucas nos informa que foi em Antioquia, na Síria, portanto, em território não judaico, pagão, que os membros da Igreja Cristã foram chamados, pela primeira vez, cristãos (At 11.26). No capítulo 15 do livro Atos dos Apóstolos, S. Lucas, não pela primeira vez no seu texto quase “jornalístico”, narra uma das divisões da Igreja Cristã infante, talvez a divisão mais importante, o problema maior, relacionado à questão da circuncisão dos gentios (pagãos). Conta o nosso autor que o primeiro concílio da Igreja debateu a questão, chegando a um consenso: os pagãos não necessitavam passar pela circuncisão, mas deveriam observar o regime de alimentos e costumes na área sexual que os judeus já observavam.

O Apóstolo Paulo, o maior missionário da Igreja infante, o que mais plantou Igrejas no Mundo Antigo e espalhou o cristianismo até a Europa, contradiz as informações apaziguadas de S. Lucas, em sua Carta aos Gálatas, que também faz parte do Novo/ Segundo Testamento.

Nesta Carta, Paulo não economiza adjetivos pejorativos e crítica ferozes aos chamados cristãos judaizantes, que atazanavam a vida dos cristãos pagãos, dizendo que, se esses não passassem pela circuncisão, não poderiam ser considerados cristãos e que a salvação deles era uma mentira. A Carta aos Gálatas não é a única que o Apóstolo dos Gentios aponta essa grande divisão na Igreja infante, outros textos de sua autoria, abordam o tema, sempre de maneira contundente, advogando a causa da liberdade dos cristãos pagãos em relação à circuncisão, uma prática do judaísmo.

Conforme a Igreja Cristã foi se espalhando pelo Oriente e Ocidente, aqui e acolá, surgiram diferenças profundas entre as igrejas locais, suas liturgias, doutrinas, interpretações bíblicas e, até mesmo, no cânon bíblico usado por essas comunidades distantes umas das outras. Ou seja, a Igreja Cristã jamais foi um bloco monolítico, uma só voz em pensamento e em opiniões acerca de muitas coisas, a começar, pela Teologia.

Mesmo a Igreja Católica Apostólica Romana, que tem no Sumo Pontífice o sucessor de Pedro e que se gaba de ser “una”, conhece partidos e divisões, opiniões distintas e variadas teologias.

A babel se instala quando se trata da Igreja Cristã Evangélica. Presbiterianos, Metodistas, Anglicanos e Luteranos são pedobatistas, ou seja, admitem o batismo de crianças. Já os pentecostais, neopentecostais e a Igreja Batista não admitem o batismo infantil e isso é só um, dos inúmeros exemplos que posso aqui elencar, das diferenças profundas entre as igrejas cristãs tais como as conhecemos hoje.

Por tudo acima exposto, causou-me indignação a abordagem do programa da Rede Globo de Televisão, chamado “O Sagrado”, sobre a homossexualidade, transmitido no dia 22 de dezembro último. Não é a primeira vez que o programa aborda a questão, inclusive, comentei anteriormente tal abordagem que você pode ler aqui: (http://acapa.virgula.uol.com.br/site/noticia.asp?codigo=9862). A diferença daquele programa e sua abordagem, para este que agora comento, é que o primeiro abordava a questão segundo a religião islâmica e o assunto principal não era a homossexualidade em si, mas as famílias homoparentais.

O grande problema desta abordagem, agora por mim comentada, do programa “O Sagrado” sobre a homossexualidade, é a parcialidade deste, a desonestidade intelectual e a informação equivocada. Explico-me:

O programa em questão apresenta o Pastor Israel Belo de Azevedo, da Igreja Batista de Itacuruçá, no bairro da Tijuca, Rio de Janeiro, como o comentador da questão desde uma abordagem evangélica sobre o assunto. O Pr. Israel é taxativo quando afirma que os evangélicos escolhem a Bíblia como regra de fé e conduta de vida e que esta proíbe a prática homossexual. Para o telespectador, então, ao terminar o programa, fica entendido que toda a igreja evangélica e que todos os evangélicos condenam a prática da homossexualidade.

Acontece que isso não é verdade!

Conforme exposto no início deste artigo, a questão homossexualidade e sua prática é entendida de maneiras diferentes pelas diferentes igrejas evangélicas, que, longe de ser um bloco monolítico acerca de crenças e costumes, encontra-se dividida, não apenas em relação à homossexualidade e sua prática, bem como acerca de outras questões sérias, inclusive.

No contexto atual, podemos dividir as igrejas cristãs, de maneira geral, em fundamentalistas não inclusivas e liberais inclusivas. Na prática, isso significa: igrejas que lêem seletivamente ao pé da letra a Bíblia e igrejas que lêem a Bíblia criticamente. As primeiras não aceitam a homossexualidade e até mesmo exclui os integrantes homossexuais de seus quadros. A segunda não somente aceita homossexuais e a prática da homossexualidade, bem como oficializam uniões homoafetivas (nem todas) e ordenam ao ministério pastoral pessoas homoafetivas (nem todas).

Nos EUA e Europa, os Anglicanos, Reformados (presbiterianos), Luteranos e um ramo da Igreja Metodista já adotam o método histórico-crítico de análise das Escrituras e chegaram a conclusão de que a Bíblia não condena a homossexualidade e sua prática e abriram suas portas e seus ministérios às pessoas homossexuais.

A Igreja Episcopal Anglicana nos EUA já possui bispos homossexuais e na Europa já têm pastores e pastoras gays. Os Luteranos, tanto nos EUA quanto na Europa, já tem pastores e pastoras homossexuais, inclusive, bispos que tem autorização da Igreja para residirem com seus respectivos cônjuges nas casas paroquiais.

Alas liberais das Igrejas Reformadas e da Igreja Metodista já avançam para a plena aceitação da homossexualidade em suas agremiações e, desde 1968, o mundo ganhou a primeira igreja evangélica radicalmente inclusiva (aberta aos LGBTs), a Igreja da Comunidade Metropolitana, fundada na Califórnia, na cidade de Los Angeles e atualmente presente em mais de trinta nações da terra, inclusive no Brasil.

No Brasil, a Igreja da Comunidade Metropolitana foi a primeira igreja abertamente inclusiva a se estabelecer e em breve comemorará sua primeira década em solo brasileiro. No rastro dessa, outras igrejas inclusivas nasceram, notadamente de cunho pentecostal, como a Comunidade Cristã Nova Esperança e a Igreja Cristã Contemporânea, dentre outras.

Portanto, a questão da condenação da homossexualidade, entre cristãos, no Brasil, não é uníssona, embora seja, infelizmente, majoritária.

Acontece que um programa de televisão, cuja concessão é pública e que tem função social, deveria informar ao telespectador não apenas uma abordagem, como se única fosse, acerca da homossexualidade, mas todas as abordagens, principalmente a abordagem inclusiva, pois basta as pregações nos programas evangélicos que condenam a homossexualidade, logo, as pessoas homossexuais (mesmo fazendo a tal hipócrita afirmação que amam os homossexuais). As pessoas homossexuais do Brasil não precisam que mais um canal na TV aberta que espalha a homofobia religiosa, já basta os canais evangélicos e os púlpitos das igrejas fundamentalistas que já realizam um “ótimo” trabalho neste sentido.

Concluo que a Rede Globo de Televisão, no programa O Sagrado, não apenas corrobora a homofobia religiosa como a espalha, fomentando a homofobia, filha do fundamentalismo religioso, que se concretiza no sofrimento de milhares de pessoas homossexuais do nosso país: nas escolas, nas famílias, nas igrejas, no trabalho etc. A Rede Globo de Televisão, quando se nega a trazer informação completa aos seus telespectadores sobre a visão religiosa cristã sobre a homossexualidade, contribui para o aumento da homofobia social em nosso país.

Segundo estatísticas colhidas pelo Grupo Gay da Bahia, que pesquisa seriamente o número de assassinatos de homossexuais no Brasil, já contamos, em 2010, o espantoso número de 250 homicídios de homossexuais. Tal número espantoso, “congratula” nosso país como o mais homofóbico do mundo, bem à frente do Irã, que penaliza a homossexualidade com a morte.

A Rede Globo de Televisão com o programa “O Sagrado”, abordando a homossexualidade da maneira que abordou, suja suas mãos no sangue dos homossexuais derramado em nossas terras. Sugiro aos meus leitores que enviem protestos à Rede Globo, informando-a de sua ignorância em relação ao assunto, pedindo, inclusive, que abandonem a má prática de se referir à homossexualidade nos seus programas jornalísticos como homossexualismo.

Nós não podemos nos calar, sob a pena de nos tornarmos cúmplices no sangue de nossos irmãos e irmãs, vítimas da homofobia que nasce da religião que exclui. Jesus Cristo, que sempre escolheu os excluídos e marginalizados, certamente está conosco! Mãos à obra, povo LGBT!

*Márcio Retamero, 35 anos, é teólogo e historiador, mestre em História Moderna pela UFF/Niterói, RJ. É pastor da Comunidade Betel do Rio de Janeiro - uma Igreja Protestante Reformada e Inclusiva - desde o ano de 2006. É, também, militante pela inclusão LGBT na Igreja Cristã e pelos Direitos Humanos. Conferencista sobre Teologia, Reforma Protestante, Inquisição, Igreja Inclusiva e Homofobia Cristã e colunista do Gospel LGBT.

Um comentário:

  1. Parabéns pelo belo e esclarecedor texto.

    Com relação ao citado pastor que apareceu na TV, ressalto que todas as formas de preconceito se assentam em visões de mundo estereotipadas e que tratam a tudo e a todos em blocos unívocos, atropelando as particularidades e a diversidade de ideias, bem como as disputas de poder que atravessam um determinado grupo social, o que é lamentável.

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