sábado, 28 de abril de 2012

Jerusalém: o desafio de ser gay na cidade "sagrada"

REPORTAGEM DO OPERA MUNDI




Apesar de reunir uma pluralidade de crenças e estilos de vida, a intolerância contra homossexuais ainda é grande






Uma terra de contrastes. Ao mesmo tempo em que Jerusalém é considerada sagrada por três religiões monoteístas – o cristianismo, o judaísmo e o islamismo – e reúne símbolos e pessoas tão diferentes entre si, é também terreno sinuoso para a manifestação de direitos civis. A cidade abriga uma comunidade homossexual vibrante, mas que frequentemente é alvo das camadas mais conservadoras.

Em Jerusalém, há apenas um bar gay e a realização da Parada do Orgulho Gay foi um direito conquistado após muito esforço. Ela reuniu quatro mil pessoas em 2011, que exigiram a aprovação de uma legislação que proteja os homossexuais em Israel. Indignados com o desfile, grupos de judeus ortodoxos protestaram em diversos pontos da cidade, controlados por cerca de mil policiais espalhados por Jerusalém -- alguns chegaram a agredir os participantes do evento. Em junho daquele ano, a marcha em Tel Aviv conseguiu reunir 70 mil pessoas.

“Embora não existam tantos homossexuais quanto em Tel Aviv, todos os anos Jerusalém atrai milhares de ativistas gays para participar da marcha, para mostrar que, mesmo que os religiosos nos considerem ‘sujos’, esta é nossa cidade também”, comenta A.S. um membro da comunidade homossexual da cidade.


Apesar das diversas ameaças de morte que recebem ano após ano durante a parada, a marcha anual se supera cada vez mais em termos de assistência e organização. “A diferença entre a nossa marcha anual e a de Tel Aviv e outras partes do mundo é que, em Jerusalém, adquire também um significado de luta pelos nossos direitos e contra o ódio que uma ampla maioria da população de Jerusalém sente por nós”, acrescenta Natalie V., uma belga que desembarcou em Jerusalém há cinco anos.

Natalie, que há cinco anos namora uma mulher israelense, é prova da dualidade do estado de Israel em relação à homossexualidade. Embora Israel seja um país democrático, o judaísmo ortodoxo interfere em muitos assuntos civis, incluindo os casamentos. Em Israel, é impossível realizar um casamento civil, mesmo entre heterossexuais. No entanto, em uma distorção, estão permitidas as uniões homossexuais, inclusive se uma delas for estrangeira, como é o caso de Natalie.

“É curioso que isto seja possível em um país onde predomina tanto a religião. Eu quero deixar claro que em Jerusalém e Israel, até o momento, não tive nenhum problema por andar de mãos dadas com a minha namorada, nem por darmos um beijo”, diz. “No entanto, trabalho com uma família ortodoxa judia e não comentei nada sobre a minha orientação sexual em quase quatro anos", conta Natalie.

Ultraortodoxos caminhando ao lado de uma mulher muçulmana usando o véu e uma menina de minissaia logo atrás são cenas comuns nas ruas de Jerusalém. E é nessa heterogeneidade que, no final, reside uma espécie de acordo tácito de não agressão. Embora, às vezes, essa bolha possa estourar, como aconteceu durante a Parada do Orgulho Gay de 2005, quando um judeu ultraortodoxo esfaqueou vários participantes. Atentado pior aconteceu à comunidade gay de Tel Aviv, quando uma bomba matou duas pessoas e feriu uma. O culpado, um colono da Cisjordânia, afirmou que os homossexuais são “animais”.

Portanto, apesar da mescla aparentemente suave entre religiosos e seculares em Jerusalém, assim como no resto do país, uma tensão soterrada pulsa abaixo da superfície. “Aqui, em geral, como os gays não carregam um cartaz dizendo ‘sou gay’, não há tantos problemas, mas também você não vai dar um beijo em outro homem em Mea Shearim (o bairro ultraortodoxo), não queremos provocá-los em seu bairro”, diz Adam.


Segundo ele, porém, o resto da cidade é de todos. O bar Mikve, antes conhecido como Shushan, na rua Shushan, foi o primeiro voltado para o público gay a ser aberto na cidade. O lugar está vivendo uma nova era dourada depois de permanecer fechado durante muitos anos devido às pressões dos ortodoxos. Durante toda a semana há festas para clientes homossexuais e as segundas-feiras são exclusivas das drag queens.

“Em Jerusalém, não há muitas festas nem lugares para dançar, por isso sempre aparecem heterossexuais. Na cidade, todos nos conhecemos e amigos de todas as orientações sexuais se juntam a nós. Estamos misturados”, conta com um sorriso Daniel R., empresário.

A empresa encarregada de organizar as festas, Unibra, garante que é um sucesso, que atrai dezenas de pessoas a semana toda, embora as festas drag sejam as preferidas. “As pessoas querem se divertir, já estão cansadas de se esconder, mas infelizmente nesta cidade não há lugares para onde sair à noite”, lamenta a Unibra.

Palestinos

Para os membros da comunidade homossexual palestina os desafios são ainda maiores. “Para eles é mais difícil, pois vem de uma sociedade mais conservadora, em que a homossexualidade é punida ou humilhada em público. Por isso, a última coisa que querem é fazer uma declaração pública de que são gays, sejam homens ou mulheres”, explica Adam.

A organização para palestinos homossexuais em Israel Al Qaws organiza eventos para os palestinos e ajuda a criar uma rede de apoio e conscientização entre a comunidade árabe. Uma vez por mês organiza uma festa para que os gays e lésbicas palestinos que vivem em Israel possam se conhecer.

“Mesmo que os palestinos que vivem em Israel contem com os mesmos direitos que os cidadãos judeus, muitas vezes há racismo e incompreensão em relação aos gays palestinos”, comenta a Al Qaws. “Há também muita incompreensão por parte da comunidade internacional, que se foca na ocupação israelense. Além disso, a opinião da comunidade palestina pesa demais. Dessa forma, não podemos esperar que eles saiam do armário como no Ocidente.”

Às vezes, Israel chega a acolher como refugiados os palestinos homossexuais que correm risco de morte ou que tenham recebido ameaças, embora não seja algo tão frequente. Enquanto isso, em Jerusalém, continua a luta para que a comunidade religiosa aceite aos homossexuais, se não como iguais, como cidadãos com os mesmos direitos de todos.

“Este é o nosso objetivo. Não queremos nem mais nem menos do que têm os demais e poder passear tranquilamente de mãos dadas, sem ter medo que nos façam sentir inferiores, nem ter a nossa Parada do Orgulho Gay cercada por centenas de policiais”, diz Adam.

Para mostrar que, embora nem sempre venha à tona, o ódio contra os gays corre solto em Jerusalém, em 2006 foi a homofobia que uniu representantes das três religiões monoteístas para protestar contra a marcha gay daquele ano. “É uma pena. Poderiam ter se unido para protestar contra outras coisas mais importantes”, lamenta Adam.

sábado, 21 de abril de 2012

Arcebispo primaz da Igreja Anglicana no Brasil manda mensagem de apoio aos gays

Sabendo do imbróglio pessoal entre o presidente da ABGLT – Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Travestis e Transexuais, Toni Reis, com o pastor Silas Malafaia, que envolve pedidos de direito de resposta, processos de difamação e um debate marcado para o dia 15 de maio em Brasília, Dom Ricardo Lorite de Lima, maior autoridade da Igreja Anglicana no Brasil, se manifestou e disse apoiar os direitos homossexuais.

Para Dom Ricardo, os evangélicos, vítimas do preconceito religioso desde o racha da igreja romana, vítimas de perseguições durante séculos, e ainda por cima cristão, não deveriam compactuar com o preconceito. “Infelizmente os evangélicos deste país esqueceram que já foram vítimas da intolerância neste país! Os evangélicos deveriam estar ao lado daqueles que ainda hoje são vítimas da intolerância e não estarem aliados aqueles que no passado foram seus algozes!”, afirmou o religioso que ainda disse que o brasileiro tem memória fraca.


Veja abaixo a mensagem:


Querido Toni,

receba o apoio integral da Igreja Anglicana do Brasil, que fiel ao ensinamento do Mestre Jesus ama e acolhe a todos, sem distinção nenhuma!

Infelizmente os evangélicos deste país esqueceram que já foram vítimas da intolerância neste país! Os evangélicos deveriam estar ao lado daqueles que ainda hoje são vítimas da intolerância e não estarem aliados aqueles que no passado foram seus algozes!

Realmente o brasileiro tem a memória muito fraca!

Os líderes religiosos devem estar a serviço dos direitos humanos e não a discriminação e ódio.



__._,_.___

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Estudo mostra que professores têm preconceito contra alunos gays



Quem deveria ensinar o respeito à diversidade também demonstra preconceito contra os homossexuais ou, no mínimo, total desconhecimento do tema. É o que indica um estudo do Ministério da Educação onde foram entrevistados professores, diretores, funcionários e alunos de 44 escolas estaduais e municipais de 11 capitais do País.

Os depoimentos, colhidos entre 2009 e 2010, falam de Educação sexual,homossexualidade e preconceito. Na maioria das escolas, casos de bullying contra gays são encarados como brincadeiras naturais.

Um educador de São Paulo diz, por exemplo, que sente “pena” dos gays e afirma não saber se a homossexualidade “é uma doença” ou se o jovem “fica assim” por ser criado no meio de mulheres. Outro, também da capital, diz que a homossexualidade pode ser detectada pela anatomia, já que as lésbicas não teriam “cintura afinada.”


Fonte: Cena G

sábado, 7 de abril de 2012

Em homenagem a 7 de abril, Dia do Jornalista Brasileiro: redação-ômega

Arco temático-narrativo ou “redação-ômega”
Encadeando ideias e conceitos em um texto jornalístico

por João Marinho
jornalista

Então, você resolveu ser jornalista. É claro que o primeiro requisito para quem quer seguir essa carreira é ser bom de texto: escrever bem, ler bem, falar bem.

É verdade que nem todos têm a aptidão necessária para trabalhar no rádio ou na tevê. Eu, por exemplo, não falo muito bem em equipamentos eletrônicos (minha voz fica horrível!) e costumo ter uma persistente alergia a câmeras – mas, em ler bem e falar bem, não me refiro ao fato de você ter um dicção excelente ou sair bonito na tevê: trata-se de saber interpretar o que lê, de estar sempre se atualizando e de saber como ser claro e conciso ao se comunicar com outras pessoas.

Introdução: técnicas de jornalismo
Escrever bem, por sua vez, é o início e o resultado dessa operação. Afinal, quando você treina sua escrita – até para os textos que serão lidos na televisão ou no rádio –, você melhora sua leitura, interpretação e o modo de falar. Ao fazer isso, melhora também a forma como escreve, em um tipo de retroalimentação.

Apesar de tudo isso soar como “chover no molhado”, a verdade é que muitos jornalistas têm dificuldade em produzir um bom texto, em capturar e segurar a atenção do leitor e em saber como conduzi-lo para onde querem. Às vezes, pode até mesmo ser difícil o jornalista saber aonde ele, jornalista, quer de fato chegar...

Isso não soa estranho porque, embora escrevamos muito durante a faculdade e aprendamos os principais esquemas formais do texto jornalístico, como a tradicional pirâmide invertida*, não é raro que os cursos falhem em dar orientação a todas as etapas da produção de um texto. Assim, mesmo quando aplicado o esquema formal, o resultado pode ser decepcionante. Estou certo de que muitos já passaram por isso. Eu já passei.

O resultado é que não é incomum que, na vida profissional, o jornalista comece a criar suas próprias ferramentas para produzir seus textos – sem, no entanto, jamais sistematizá-las. Por isso, resolvi dar uma ajuda.

Minha proposta, com este e outros textos que virão posteriormente, é procurar fazer essa sistematização que nunca fazemos – e tentar ajudar estudantes e até profissionais a produzir um texto mais interessante.

A boa notícia é que muitas técnicas também podem ser usadas por não jornalistas na tarefa de fazer redações. Como se trata de uma iniciativa pessoal, também as técnicas receberam nomes que eu mesmo dei. Vamos lá?

Técnica do arco temático-narrativo, ou “redação-ômega”
Pensei muito em como nomear essa primeira técnica, que, na verdade, pode ser aplicada a quase qualquer tipo de redação, não apenas a jornalística.

O nome deriva do fato de que, quando a explicava para amigos – alguns que ajudei a melhorar o texto, inclusive –, a imagem persistente que me vinha à cabeça era de um arco, que lembrava a letra grega ômega maiúscula (veja a imagem no início deste post)...

A ideia da técnica do arco temático-narrativo é muito simples e adequada a textos de revista. Você começa com uma introdução pensada de forma a capturar a atenção do leitor e que, num primeiro momento, até pode parecer não se relacionar com o assunto que você vai abordar. Essa introdução é a primeira “perna” do ômega e já tem até um nome jornalístico: nariz-de-cera.

Em seguida, você joga uma “isca” para o leitor, e é onde o arco temático-narrativo começa. Essa “isca”, que apelidei de epígrafe, comumemente é constituída por uma ou mais perguntas que instigarão o leitor e que, portanto, deverão ser respondidas no fechamento do arco, perto do fim do texto. A epígrafe é o tema, o objetivo daquela redação. O arco temático-narrativo, por sua vez, é simplesmente o desenvolvimento do tema que a epígrafe lançou – e ele precisará ser “fechado” em algum momento.

Isso significa que não importa o tamanho do arco – ou da “volta” – que você vai dar sobre o tema: no final, você terá de evocar a epígrafe e respondê-la. É ela também que vai “amarrar” seu texto e sedimentar a atenção do leitor. Não respondê-la dará a impressão de que o texto ficou sem sentido.

Finalmente, você termina a redação com a última “perna” do ômega: é o arremate, que nada mais é do que terminar o trabalho e apresentar as conclusões e eventuais agradecimentos.

Redação-ômega: assunto, tema, elementos
Bom, acredito que o arremate se explique por si só... Mas, se você ficou confuso sobre a epígrafe, o arco temático-narrativo e o nariz-de-cera, melhor demonstrar.

A reportagem “Negro Drama” (http://acapa.virgula.uol.com.br/revista/negro-drama-entenda-o-preconceito-sofrido-por-gays-negros/13/38/10310), escrita por mim para a revista A Capa, é um clássico exemplo de “redação-ômega”, e bem simples.

Tendo em mente que o assunto da reportagem é o preconceito sofrido por negros gays, como deixam claro o título e a linha fina**, confira as partes destacadas no início da reportagem:

Nariz-de-cera: introdução sobre a eleição de Barack Obama
Enquanto esta matéria era escrita, estava em curso a eleição presidencial norte-americana. No dia em que ela foi fechada, Barack Obama, um negro, se tornou presidente do país mais poderoso do mundo.
Lá, como cá, muitos negros estão em festa. A vitória de Obama carrega um forte simbolismo. Afinal, falamos de uma população historicamente alijada de direitos, vítima de preconceitos e com dificuldades no acesso a bens, serviços e ao poder. Quando, à cor da pele, soma-se a orientação sexual ou identidade de gênero diferente da maioria, as coisas tendem a piorar. Lá, como cá.

Epígrafe: as perguntas que norteiam a reportagem e devem ser respondidas no final
Se, no Brasil, não dá para negar o duplo preconceito a que negros LGBTs são submetidos, quais seriam, estruturalmente, as razões que levaram, ou levam, a essa situação? E o que tem sido feito, em termos de mobilização social, para alterar esse quadro? É sobre isso que pretendemos lançar luz.

A epígrafe marca o início do arco temático-narrativo e é também seu objetivo. No exemplo acima, ao final da reportagem, o leitor deverá ser capaz de identificar as razões por trás do (duplo) preconceito que afeta negros gays, bem como estar informado sobre grupos e estratégias que se levantam contra essa situação.

Como se pode concluir, a vantagem da “redação-ômega” é que a existência da epígrafe também ajuda a encadear, no arco, os diferentes aspectos do tema – as razões do duplo preconceito, preconceito este referido como assunto.

Por sinal, aqui, é importante esclarecer uma diferenciação pessoal que estou adotando entre os termos assunto e tema, se o leitor já não percebeu. Tal como na biologia, considero assunto o gênero; tema, a espécie. Assim, o primeiro diz respeito ao objeto geral tratado pelo texto. O segundo, ao ângulo ou particularidade, dentro daquele objeto, que nos prontificamos a abordar.

Confuso (a)? Voltemos ao exemplo do texto “Negro Drama”. Se está claro que o assunto da reportagem é o duplo preconceito sofrido pelos negros gays, o tema, que é trazido pela epígrafe, é o ângulo ou particularidade sobre o qual incidirá nosso foco dentro do assunto. O tema, repetindo, são as razões por trás do duplo preconceito.

O tema podia ser outro, correto? Poderíamos, por exemplo, entrevistar brancos e pardos e focalizar as dezenas de estereótipos que eles têm sobre os negros e nos porquês de serem estereótipos, ou ainda fazer uma abordagem que privilegiasse experiências reais e concretas de duplo preconceito sofridas por negros gays, em uma perspectiva de relatos biográficos.

Evidentemente, o leitor haverá de supor, corretamente, que o texto que escrevi também flerta com estereótipos e situações de preconceito – mas esses não são os temas que escolhi, não são a perspectiva que adotei ao escrever. Como o leitor verá a seguir, eles aparecem no texto como derivações do meu objetivo principal, que é explicar as razões do duplo preconceito, o que demanda, inclusive, uma abordagem histórica diferenciada.

Por sinal, é na História que começamos o nosso arco temático-narrativo. Se, nessa reportagem sobre os negros gays, nós nos prontificamos a explicar as razões do duplo preconceito, podemos começar justamente por uma abordagem histórica, que narre a chegada dos negros como escravos e o surgimento do ideário social que os inferiorizava.

Ser escravo e, como tal, não ter vontade pessoal, não ter direito sobre o próprio corpo e estar sob o jugo do senhor, inclusive no terreno sexual, também ajudou a formar um estereótipo sexual do negro. Qual seria esse estereótipo – e ele permanece ainda hoje? Se permanece, em que medida os negros que não se encaixam nele sofrem com o preconceito social? E em que medida isso lhes causa ansiedade? Os estereótipos encontram-se presentes entre os gays? Se sim, como ajudam a piorar a situação dos negros homossexuais e como se encaixam entre as razões do duplo preconceito – justamente, o tema explicitado pela epígrafe?

Ora, todas essas derivações são precisamente as constituintes do arco temático-narrativo em si mesmo! E poderíamos pensar em muitas outras... Elas são também exemplos de como, conforme já citado anteriormente, a epígrafe, ao nos dar um tema, “amarra” o texto.

Ao final, mesmo na possibilidade de que o autor “jogue a bola” para o leitor tirar suas próprias conclusões, a provocação trazida pela epígrafe ajuda esse mesmo autor como norte, como a “cola” que ligará cada um dos diferentes aspectos que tratar sobre aquele tema, corretamente distribuídos e agrupados, dentro do arco, em subtítulos temáticos.

Trabalhando em outros níveis
Evidentemente, a técnica do arco temático-narrativo, ou “redação-ômega”, não precisa ser empregada de forma tão literal. Às vezes, por exemplo, a epígrafe pode estar maquiada no decorrer da estrutura do texto e nem mesmo se constituir em uma pergunta direta. O nariz-de-cera, por sua vez, pode ser fundido ao próprio arco temático-narrativo, imergindo o leitor diretamente no assunto abordado.

Em outras palavras, é possível fazer uma introdução que “já entre de sola” no assunto, embora sem que o leitor saiba, à primeira vista, o porquê daquilo tudo. Também se pode usar o nariz-de-cera para passar informações sobre a técnica jornalística utilizada e seus porquês, uma influência que guardo do jornalismo de precisão.

Observem, por exemplo, a reportagem “Rola no escurinho”, outra que escrevi para A Capa (http://acapa.virgula.uol.com.br/revista/reporter-relata-o-que-acontece-no-escurinho-do-cinemao/13/38/5481). Ela começa assim:

Dia 25 de janeiro deste ano. Decidido a curtir a metrópole, eu, como muitos outros, saí à tarde para pegar um cineminha... Eram quase 16h. O filme já tinha começado, mas não havia problema. Eles todos têm a mesma temática e se repetem ininterruptamente, em sequência.

Como eu havia acabado de sair do sol, minha visão não conseguia distinguir nada. Sentei mais ou menos no meio da sala, na cadeira da ponta, e esperei. Um vulto se aproximou e um par de peitos enormes avançou em meu rosto. "E aí, tudo bem?". "Tudo, e com você?". "Tudo bem, gatinho. Quer gozar?". Era uma travesti. "Não, não. Obrigado, moça", respondi. Ela sai sorridente e educada.

Pouco tempo depois, um homem senta logo atrás de mim. Parece ser maduro. Olho para trás. A visão está melhor, mas não 100%. No entanto, é o suficiente para perceber que ele segura algo grande e brilhante nas mãos. Chamo-o para perto. Ele vem. "Olha, sei que
isso é pra mim, mas cheguei agora e não tô enxergando nada". "Se quiser, sento aí do lado". "Melhor esperar".

Não, não se trata de um cinema qualquer. Estou em um cine pornô (...).

Percebam que o nariz-de-cera aqui, diferentemente do existente em “Negro Drama” e do que expliquei mais atrás, não é uma parte do texto que aparentemente não tem a ver com o assunto, visando tão-somente a introduzi-lo.

Aqui, o nariz-de-cera já é parte do assunto. Ele parece muito longo, mas, desde o começo, o leitor já está imergindo no assunto da reportagem, que é o cinema pornô. Mais para frente, o texto continua:

Não era a primeira vez. Desde que A Capa havia me pautado para uma reportagem sobre o assunto, já tinha comparecido seguidamente às "sessões". A ideia: fazer um jornalismo gonzo. Basicamente, significa que o repórter tem de se envolver, participar - até o limite do bom senso - e registrar a experiência em primeira pessoa (...). 

Aqui, o nariz-de-cera se aprofunda e traz uma informação sobre a técnica utilizada para a reportagem: o jornalismo gonzo. Continuemos:

Resolvi, portanto, prescindir da recorrência a especialistas e me centrar mais no que os frequentadores me relataram e no que vivenciei naquele ambiente escuro, decadente e malcheiroso.

Percebam que a transição entre o nariz-de-cera e a epígrafe é bem mais sutil que em “Negro Drama”, quase imperceptível, e a epígrafe se encontra maquiada. Qual é o norte da reportagem, a “cola” que unirá os subtítulos no arco temático-narrativo? Resposta: a vivência direta do repórter no “ambiente escuro, decadente e malcheiroso” e os relatos colhidos dos frequentadores sobre o local.

Lembram-se da diferença entre assunto e tema? O assunto é o popular cinemão, mas, em vez de, por exemplo, fazer uma abordagem a partir da perspectiva de estudiosos, ou da intervenção na área de saúde, ou mesmo da relação entre os cinemões e o poder público, escolhi a perspectiva de trabalhar o que os frequentadores dizem daquele espaço e de si mesmos.

Resta claro que, sob a batuta desse tema, a descrição dos lugares e de quem os povoa terá um peso importante no meu texto. Acertou quem entendeu que o nariz-de-cera já trouxe esse elemento de apelo à descrição, embora, a princípio, o leitor não soubesse o porquê...

Só de curiosidade, no Dicionário Houaiss, a definição que encontramos para nariz-de-cera é uma “introdução freq. longa, vaga e desnecessária a uma notícia, reportagem etc., composta em medida menor do que a normalmente us. para uma coluna ou página”.

No entanto, como se vê, é possível fazer um uso muito mais criativo dessa ferramenta jornalística e de sua combinação com a epígrafe na técnica de redação ora apresentada. Nada mal para quem o julgava desnecessário, não é?


* técnica jornalística típica de jornal em que o primeiro parágrafo, chamado de lide, contém as respostas às perguntas mais importantes sobre a notícia (o quê, quem, quando, onde, por quê e como), e os demais a desenvolvem, em ordem das informações de mais importância para as de menos importância. Assim, o editor, ao cortar um texto, começa pelos últimos parágrafos, que contêm as informações menos relevantes, prática às vezes chamada de “cortar pelo rabo”. Às vezes, o conteúdo típico de um lide pode vir dividido em um lide e um sublide.

** também pode ser chamada de subtítulo, nomenclatura que não usamos aqui para não confundi-la com o termo “subtítulos temáticos”. A linha fina é uma explicação ou pequeno desenvolvimento colocado logo abaixo do título. No caso deste texto, a linha fina seria: “encadeando ideias e conceitos em um texto jornalístico”.


João Marinho é jornalista diplomado pela PUC-SP, classe de 2004, e adora textos de revista e sites, embora o curso tenha se centrado nos textos para jornais...





sexta-feira, 6 de abril de 2012

A polêmica dos símbolos religiosos


Faz sentido retirar cruzes e outros objetos dos tribunais e repartições públicas?

* por Renato Hoffmann

O Estado brasileiro é laico, mas as repartições públicas não! Essa é a real sensação de qualquer cidadão ao entrar em estabelecimentos do Executivo, Legislativo e Judiciário nesse país. Na minha infância, quando estudei em escolas da rede municipal, lá estava ele: O Crucificado, em cima do quadro negro, bem ao centro da classe. No colégio, ele já não estava em sala de aula, mas na secretaria e na diretoria, e quando me mudei para um colégio católico, não senti a diferença visual do público para o privado, pois era tudo igual; crucifixos, crucifixos e mais crucifixos!

Em princípio, e para grande maioria, isso pode não transparecer uma dificuldade, ou algo que, de fato, deva ser levado a sério. Contudo, a questão existe, e não é mínima, em sentido de insignificância, que não deva ser debatida ou venha ser colocada de lado, em segundo plano. Até, pelo fato, de que, ao se garantir um Estado laico, a liberdade de consciência e de crença, conjuminadas com as inúmeras liberdades, formam o escopo das liberdades constitucionais, e são garantias de direitos fundamentais. Aliás, direito esse que o Estado deve atuar de forma “positiva”, ou seja, não apenas não intervir na liberdade- autonomia privada, mas, no que diz respeito à conquista da liberdade, garantir a manutenção da mesma, pois o indivíduo, cidadão, depende da postura ativa do Estado, para que suas liberdades constitucionais sejam concretas. Assim, muito além de se ter uma liberdade perante o Estado, a laicidade, evocada na Constituição da Republica, como uma forma positiva de atuação, vem nos garantir o desfrutar das liberdades mediante a atuação do mesmo Estado.

Mas o que significa dizer isso? Significa, exatamente, à afirmação que vem expressa no Art. 19, inciso I da CR/88:

É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:


I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes, relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.

Em outras palavras, quando o Estado procede dessa forma, ele está de modo “positivo” garantindo as liberdades constitucionais de todos, sem intervir, ou fomentar, qualquer uma que seja, em oposição a todas elas que existem, dentro do espaço público que é laico. Entretanto, quando às repartições públicas é estabelecida uma imagem religiosa, qualquer que seja; de qualquer religião que for; uma opção é feita, lamentavelmente, em privilégio de uma confissão de fé, em demérito e flagrante desrespeito a todas as outras que não tiveram o mesmo privilégio de ter os seus símbolos expostos como padrão de crença ou ideologia que se segue dentro de determinada repartição do poder público. Assim, jamais o Estado poderá ser neutro, pois sendo neutro, ele não se manifesta, e as religiões de maioria aproveitam da situação para usarem o espaço público em nome de uma omissão confundida com neutralidade.

Na verdade, imediatamente a própria Constituição da República passa ser maculada, e o ente público, ou o próprio Estado, passa a uma atuação NEGATIVA das próprias liberdades constitucionais, pela inibição, constrangimento e declaração do que se segue, ou da linha ideológica adotada dentro de determinado setor, pois, se a própria constituição afirma que: ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei (Art. 5º, inciso VIII da CR/88). Quando um símbolo de fé sobressai em um órgão público, o direito de todos os outros símbolos coexistirem, de todas as outras religiões, de igual forma, sobressaírem foi vedado. Destarte, quando o Estado se opõe a todas as religiões em nome da laicidade, ele passa a garantir que todas possam conviver; coexistir com os mesmos direitos e da mesma forma, sem fomentar qualquer ideologia que seja ou subvencioná-las, e ainda poderá, mediante o interesse público, ter a colaboração de qualquer uma que seja, sem custodiar doutrinas ou ideal religioso no espaço comum estatal.

E é nesse aspecto, que gostaríamos de discordar do ilustre magistrado federal, Willian Douglas, em seu artigo: Ação contra crucifixos mostra intolerância, publicado no site Genizah (http://www.genizahvirtual.com/2012/03/acao-contra-crucifixos-mostra.html), em que este defende o “direito” do crucifixo estar onde está numa repartição pública! Partindo da premissa das questões históricas, da construção de identidade brasileira, fluídas da identidade católica e do direito da maioria impor sobre a minoria seus ideais.

Nessa questão, o magistrado usou conceitos do constitucionalista e advogado judeu, Josph Weiler, no Tribunal Europeu de Direitos Humanos, em que este defendeu o direito da Itália ter crucifixos em repartições públicas e salas de aula estatais. Acontece que, o mesmo constitucionalista, na mesma defesa, também defendeu o direito da França em não se ter os mesmos símbolos religiosos expostos! E tudo passa pelo direito interno de cada país. Na Itália, embora Estado e religião sejam separados constitucionalmente, há acordos internacionais em que se celebram alianças entre o Estado italiano e o Vaticano, e a educação católica no país. Assim, Josph Weiler, em nome da nacionalidade, tradição e historicidade italianas, posicionou-se pelo respeito do Tribunal Europeu às questões de identidade próprias. Afirmou que não seria de bom senso que Estrasburgo impusesse uma determinação, que violasse a própria identidade nacional, sem que essa fosse deixada, largada, primeiro, internamente, assim compete às sociedades mudar; se um dia os ingleses decidirem deixar de ter o Anglicanismo como religião oficial, podem fazê-lo. Entretanto, Não compete a Estrasburgo fazer isso por eles!

E nesse aspecto, específico, e muito próprio da defesa de Weiler, parece-nos que o preclaro juiz, Willian Douglas, tenha se equivocado um pouco, ao descontextualizar a defesa no Tribunal Europeu e traduzi-la à situação brasileira. E isso, exatamente, pelo fato do Brasil ter se pronunciado pela laicidade positiva do país na sua Constituição da República Federativa de 1988. Portanto, o argumento em que se evoca que daqui a alguns anos não só os símbolos serão retirados, mas como os feriados religiosos serão abolidos e toda a identidade histórica que flui dessa religiosidade será demolida, é no mínimo um exagero. Nenhuma identidade de nome de rua, de estado federativo, ou monumento corre risco pela própria manutenção CONSTITUCIONAL do patrimônio histórico-cultural e direito a essa identidade serem garantidas. Embora, pensamos que a manutenção dos feriados religiosos seja uma corrupção do direito a laicidade, a defesa do patrimônio religioso como identidade não o é. E, em momento algum está em jogo tal proposição, mas tão somente aquela em que independente do Brasil ter uma maioria cristã, o Estado brasileiro decidiu pela manutenção da pluralidade da liberdade de consciência, e somente de forma positiva, quando essa liberdade é garantida pelo Estado de forma a contemplar a todos, e não a maioria, mas a todos, é que, de fato, as liberdades constitucionais são desfrutadas pela tutela do próprio Estado na sua atuação direta,e não na sua neutralidade, em fingir que se tem a laicidade enquanto uma religião de maioria é contemplada e todas as outras devam respeitá-la, enquanto ela mesma não respeita ninguém!

Por óbvio que em um tribunal onde se está um crucifixo, na sala de um magistrado qualquer, se o escrivão desejar colocar o seu ebó do candomblé, na porta de entrada da sala, será repreendido pelos cristãos e pela ofensa da fé deles, pois ao que pese o Estado é laico e, portanto, tal obejeto de culto não é permitido, somente o crucifico, pois o Estado laico admite a imposição da maioria, a nosso ver, parece tão somente uma falácia argumentativa, de um preconceito sem precedentes, de um desrespeito desmedido pela própria constituição e seus ditames em nome de uma fé sincrética.

*Renato Hoffmann é bacharel em Direito e pós-graduado em psicologia.

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    Ação contra crucifixos mostra intolerância

    William Douglas

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    “(…) em atenção à queixa de um cidadão, que se sentiu discriminado pela presença de um crucifixo no Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo, a Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão entrou com uma ação civil pública para obrigar a União a retirar todos os símbolos religiosos ostentados em locais de atendimento ao público no Estado. A ação, com pedido de liminar, visa garantir a total separação entre religião e poder público, característica de um Estado laico, ainda que de maioria cristã, como o Brasil. ‘Minha ação restringe-se aos ambientes de atendimento ao público. Nada contra o funcionário público ter uma imagem de santo, por exemplo, sobre a sua mesa de trabalho’. Católico praticante (‘comungo e confesso’, diz Dias, 38 anos, o Procurador responsável pela ação. Uma decisão favorável no TRF-SP certamente levará o assunto a outras instâncias. O único precedente que existe é negativo. Em junho de 2007, o Conselho Nacional de Justiça indeferiu o pedido de retirada de símbolos religiosos de todas as dependências do Judiciário. Na ação pública, Dias lembra que, além de estarmos em um Estado laico, a administração pública deve zelar pelo atendimento aos princípios da impessoalidade, da moralidade e da imparcialidade, ou seja, garantir que todos sejam tratados de forma igualitária. O procurador entende, nesse sentido, que um símbolo religioso no local de atendimento público é mais que um objeto de decoração, mas pode ser sinal de predisposição a uma determinada fé. “Quando o Estado ostenta um símbolo religioso de uma determinada religião em uma repartição pública, está discriminando todas as demais ou mesmo quem não tem religião, afrontando o que diz a Constituição’.” (04/08 - 16:29 - Mauricio Stycer, repórter especial do IG).

    O tema vem sendo cada vez mais discutido e, ao meu ver, está sendo objeto de uma interpretação equivocada por aqueles que desejam a retirada dos símbolos religiosos. O Estado é laico, isso é o óbvio, mas a laicidade não se expressa na eliminação dos símbolos religiosos, e sim na tolerância aos mesmos.

    A resposta estatal ao cidadão queixoso, mencionado acima, não deveria ser uma ação civil pública, mas uma simples orientação, no sentido de que o país ter uma formação histórica-cultural cristã explica que haja na parede um crucifixo e que tal presença não importa em discriminação alguma. Ao contrário, o pensamento deletério e a ser combatido é a intolerância religiosa, que se expressa quando alguém desrespeita ou se incomoda com a opção e o sentimento religioso alheios, o que inclui querer eliminar os símbolos religiosos.

    Ao contrário do que entende o ilustre Procurador mencionado, a medida não se limitará aos ambientes de atendimento ao público. O próximo passo será proibir também os símbolos na mesa de trabalho, seja porque o ambiente pertence ao serviço público, seja porque em tese poderia ofender algum colega que visualizasse o símbolo. No final, como se prenuncia no poema “No caminho, com Maiakóvski”, o culto e devoção terão que ser feitos em sigilo, sempre sob a ameaça de que alguém poderá se ofender com a religião do próximo. Nesse passo, eu, protestante e avesso às imagens (é notório o debate entre protestantes e católicos a respeito das imagens esculpidas de santos), tive a ocasião de ver uma funcionária da Vara Federal onde sou titular colocar sobre sua mesa uma imagem de Nossa Senhora de Aparecida. A minha formação religiosa e jurídica, onde ressalto a predileção, magistério e cotidiano afeito ao Direito Constitucional, me levou a ver tal ato com respeito, vez que cada um escolhe sua linha religiosa. A imagem não me ofendeu, mas sim me alegrou por viver em um país onde há liberdade de culto. Igualmente, quando vejo o crucifixo com uma imagem de Jesus não me ofendo por (segundo minha linha religiosa) haver ali um ídolo, mas compreendo que em um país com maioria e história católica aquela imagem é natural. O crucifixo nas cortes, independentemente de haver uma religião que surgiu do crucificado, é uma salutar advertência sobre a responsabilidade dos tribunais, sobre os erros judiciários e sobre os riscos de os magistrados atenderem aos poderosos mais do que à Justiça.

    Vale dizer que se a medida for ser levada a sério, deveríamos também extinguir todos os feriados religiosos, mudar o nome de milhares de ruas e municípios e, ad reductio absurdum, demolir simbolos e imagens, a exemplo, que identificam muitas das cidades brasileiras, incluindo-se no cotidiano popular de homens e mulheres estratificados em variados segmentos religiosos. Ao meu sentir, as pessoas que tentam eliminar os símbolos religiosos têm, elas sim, dificuldade de entender e respeitar a diversidade religiosa. Então, valendo-se de uma interpretação parcial da laicidade do Estado, passam a querer eliminar todo e qualquer símbolo, e por consequência, manifestação de religiosidade. Isso sim é que é intolerância.

    Embora cristão, as doutrinas católicas diferem em muitos pontos do que eu creio, mas se foram católicos que começaram este país, me parece mais que razoável respeitar que a influência de sua fé esteja cristalizada no país. Querer extrair tais símbolos não só afronta o direito dos católicos conviverem com o legado histórico que concederam a todos, como também a história de meu próprio país e, portanto, também minha. Em certo sentido, querer sustentar que o Estado é laico para retirar os santos e Cristos crucificados não deixaria de ser uma modalidade de oportunismo.

    Todos se recordam do lamentável episódio em que um religioso mal formado chutou uma imagem de Nossa Senhora na televisão. Se é errado chutar a imagem da santa, não é menos agressivo querer retirar todos os símbolos. Não chutar a santa, mas valer-se do Estado para torná-la uma refugiada, uma proscrita, parece-me talvez até pior, pois tal viés ataca todos os símbolos de todas as religiões, menos uma. Sim, uma: a “não religião”, e é aqui que reside meu principal argumento contra a moda de se atacar a presença de símbolos religiosos em locais públicos.

    A recusa à existência de Deus, a qualquer religião ou forma de culto a uma divindade não é uma opção neutra, mas transformou-se numa nova modalidade religiosa. Se por um lado temos um ateísmo como posição filosófica onde não se crê na(s) divindade(s), modernamente tem crescido uma vertente antiteísta. Para tentar definir melhor essa diferença, vale dizer que se discute se budistas e jainistas seriam ou não ateus, por não crerem em divindades além daquela representada pela própria pessoa ou grupo delas, no entanto jamais se discutiria se um budista é ou não antiteísta. É inegável reconhecer-se que esta nova vertente religiosa tem seus profetas, seus livros sagrados e dogmas. Como a maior parte das religiões, faz proselitismo, busca novos crentes (que nessa vertente de fé, são os “não crentes”, “not believers”, os que optam por um credo que crê que não existe Deus algum).

    É conhecida a campanha feita pelos ateus nos ônibus de Londres. A British Humanista Association colocou o anúncio There’s probably no God. Now stop worrying and enjoy your life (“Provavelmente Deus não existe. Então, pare de se preocupar e aproveite sua vida”) nas laterais de ônibus britânicos, ao lado dos tradicionais anúncios religiosos. Repare-se que o “provavelmente” demonstra educação, senso político ou cortesia, e que nos cartazes nos ônibus todas as letras estavam em caixa alta, eliminando a discussão sobre se deveriam escrever Deus com “D” ou “d”. Mas nem todos os ateus são educados e cordatos, embora uma grande quantidade deles, grande maioria eu creio, o seja.

    Assim como o Protestantismo foi uma reação aos que não estavam satisfeitos com o catolicismo romano, o antiteísmo, ou ateísmo militante, que vemos hoje, é uma reação dos que estão insatisfeitos com a religião. Interessante perceber que esta linha de ateus é intolerante e, como foi historicamente comum em todas as religiões iniciantes ou pouco amadurecidas, mostrou-se virulenta e desrespeitosa no ataque às demais. Esta nova religião, a “não religião”, ao invés de assumir o controle ou titularidade da representação divina, optou por entender que não existe Deus nenhum. Em certo sentido, ao eliminar a possibilidade de um ser superior, assumiu o homem como o ser superior. Aqui o homem que professa tal tipo de crença não é mais o representante de Deus, mas o próprio ser superior. Nesse passo, a nova religião tem outra penosa característica das religiões pouco amadurecidas, consistente na arrogância e prepotência de seus seguidores, apenas igualada pelo desprezo à capacidade intelectual dos que não seguem a mesma linha de pensamento.

    Assim, enquanto existe um ateísmo que simplesmente não crê e que demonstra as razões disso em um ambiente de respeito e diversidade, vemos crescer também um outro ateísmo, agressivo, que não apenas não livrou o mundo dos males da religião, mas também passou a reprisá-los.

    O principal profeta dessa religiosidade invertida (mas nem por isso deixando de ser uma manifestação religiosa) é Richard Dawkins, autor do livro “Deus, um Delírio”. Ele está envolvido, como qualquer profeta, na profusão de suas ideias, fazendo palestras e livros, concedendo entrevistas e fazendo suas “cruzadas”. A Campanha Out (em inglês: Out Campaign) é uma iniciativa proselitista em favor do ateísmo, tendo até mesmo um símbolo, o “A” escarlate. A campanha atualmente produz camisetas, jaquetas, adesivos, e broches vendidos pela loja online, e os fundos se destinam à Fundação Richard Dawkins para a Razão e a Ciência (RDFRS). Algo que não deixa de ser muito semelhante às campanhas financeiras típicas de outras manifestações de fé.

    Como alguns profetas religiosos, Dawkins não poupa pessoas ilustres de credos concorrentes. Por exemplo, em seu livro, ele diz sobre Madre Teresa o seguinte: “(...) Como uma mulher com um juízo tão vesgo pode ser levada a sério sobre qualquer assunto, quanto mais ser considerada seriamente merecedora de um Premio Nobel? Qualquer um que fique tentado a ser engabelado pela hipócrita Madre Teresa (...)” (pág. 375).

    Naturalmente, entendo que Dawkins e seus seguidores têm todo o direito de pensarem e professarem qualquer fé, mesmo que seja a fé na inexistência de Deus e nos malefícios da religião. Contudo, só porque não creem em um Deus ou vários dEles, não estão menos sujeitos aos valores, princípios e leis que, se não nos obrigam à fraternidade, ao menos nos impõem a respeitosa tolerância. Outra coisa que não se pode é identificar em qualquer Deus ou símbolo religioso um inimigo e se tentar cooptar a laicidade do Estado para proteger sua própria linha de pensamento sobre o assunto religião.

    Ao meu ver, discutir os símbolos religiosos é mais fácil do que enfrentar a distribuição de renda, a fome, injustiça e a desigualdade social. Não nego a importância do assunto, mas acharia cômico se não fosse trágico que as pessoas se ofendam com uma cruz o bastante para acionar o Estado e não o façam diante de outras situações evidentemente mais prementes. Talvez mexer com os religiosos seja mais simples, divertido e seguro, mas certamente não demonstra uma capacidade superior de escolher prioridades. Portanto, parece conveniente lembrar que católicos, judeus, evangélicos, espíritas e muçulmanos, e bom número de ateus também, gastam suas energias ajudando aos necessitados. Tenho a esperança de que nas discussões haja mais coerência e menos “pirotecnia” e “perfumaria” de quem discute o sexo, digo, a existência dos anjos em vez de enfrentar os verdadeiros problemas de um país que, salvo raras e desonrosas exceções, é palco de feliz tolerância religiosa.

    A eliminação dos símbolos religiosos atende aos desejos de uma vertente religiosa perfeitamente identificada, e o Estado não pode optar por uma religião em detrimento de outras. A solução correta para a hipótese é tolerar e conviver com as diversas manifestações religiosas. Assim, os carros poderão continuar a falar em Jesus, Buda, Maomé, Allan Kardec ou São Jorge sem que ninguém deva se ofender com isso. Ou, se isso ocorrer, que ao menos não receba o beneplácito de um Estado que optou por ficar equidistante das inúmeras, infinitamente inúmeras, formas de se pensar o tema fé. Não ter fé e não apreciar símbolos religiosos é apenas uma delas, respeitabilíssima, mas apenas uma delas.

    Por fim, acaso fosse possível ser feita uma opção, não poderia ser pela visão da “minoria”, mas da “maioria”. Talvez essa afirmação choque o leitor. Dizer que se for para optar, que seja pela “maioria” choca, pois o conceito de “respeito às minorias” já está razoavelmente assimilado. Mas também deveria chocar a ditadura da minoria, a tirania dos que se transformam em vítimas ao invés de evoluírem o suficiente para ver nos símbolos religiosos não uma ofensa, mas um direito, e entender que os que já estão por aí, nas ruas, repartições e monumentos são apenas uma consequência da nossa longa formação histórica e cultural.

    Em suma, espero que deixem este crucifixo, tão católico apostólico romano quanto é, exatamente onde ele está. Excluir símbolos é fazer o Estado optar por quem não crê. A laicidade aceita todas as religiões ao invés de persegui-las ou tentar reduzi-las a espaços privados, como se o espaço público fosse privilégio ou propriedade de quem se incomoda com a fé alheia. Eu, protestante e empedernidamente avesso às imagens esculpidas, as verei nas repartições públicas e saudarei aos católicos, que começaram tudo, à liberdade de culto e de religião, à formação histórica desse país e, mais que tudo, ao fato de viver num Estado laico, onde não sou obrigado a me curvar às imagens, mas jamais seria honesto (ou laico, ou cristão, ou jurídico) me incomodar com o fato de elas estarem ali.

    William Douglas juiz federal, professor, escritor, mestre em Direito - UGF, Especialista em Políticas Públicas e Governo – EPPG/UFRJ. (e evangélico).