terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Gays de direita

Gays de direita


por João Marinho

Está aí um assunto polêmico que merece importantes considerações. Muitos LGBTs acreditam, erroneamente, que seja "impossível" ou "paradoxal" existirem LGBTs direitistas.

Não é.

Tal como acontece na esquerda, existem diferentes extratos da direita no espectro político. Alguns são realmente fundamentalistas, misturam religião com Estado laico e falso moralismo, em um conservadorismo chocante e hipócrita. Aí, sim, há um paradoxo – só que nem todos são assim. Até porque, também existem esses tipos de personagens, mudando uma coisa ou outra, que, no entanto, denominam-se "esquerdistas com orgulho".

Na verdade, é preciso entender que existem LGBTs em todos os segmentos e cores políticas. Embora eu seja utopicamente anarquista e, na prática política, esquerdista social-democrata – não compactuo com a esquerda mais comunista e aguerrida: nunca acreditei no "Estado operário" nem na "ditadura do proletariado" –, não me incomoda haver gays que são direitistas, no sentido político da palavra "direita", ou seja, que defendam o livre mercado, o Estado mínimo, a regulamentação individual e a lei de oferta e procura. 

Não acho que ser LGBT signifique necessariamente, ou tenha de significar, ser esquerdista. Até porque, sejamos sinceros, num passado não muito distante, a esquerda foi tão ou mais homofóbica quanto segmentos de direita, a ponto de chamar a homossexualidade de "vício burguês". Não podemos deixar de observar, também, que os ex-países socialistas estão hoje entre os mais legalmente homofóbicos do mundo. Foram os países capitalistas que começaram uma mudança, notadamente os nórdicos social-democratas.

Mesmo hoje, há esquerdistas que veem na luta contra a LGBTfobia uma "luta menor", sendo a maior a luta de classes. João Silvério Trevisan já escreveu exaustivamente sobre isso em seus artigos, contando como a esquerda cooptou o movimento LGBT. Portanto, ser dono do capital ou ser trabalhador não deve ser parâmetro para respeitar ou não uma pessoa.

Há donos de capital que são mais simpatizantes que trabalhadores assalariados homofóbicos. É natural que nos unamos na luta contra a homofobia e outras "fobias", mas, na hora de discutir sobre o papel do Estado e da economia, discordemos, se eu tomar como parte as minhas ideologias políticas.

O ponto principal é que o direitista (e/ou o esquerdista) não seja um retrógrado moral e homofóbico, por ser esta uma condição que nos retira a cidadania – e há os que não são – e que seja terminantemente democrático, porque não é possível hoje defender nenhum tipo de ditadura. Nem as de esquerda. Resolvido esse ponto, a direita, no espectro político, é um interlocutor tão ou mais respeitável que a esquerda.

Ademais, é bastante positivo que existam, inclusive, LGBTs direitistas. É natural da democracia a alternância de poderes. Havendo LGBTs com tendência à direita e seus simpatizantes, não corremos ou corremos menos o risco de ter nossos direitos cassados pelas alas fundamentalistas, quando a esquerda sair do poder... E ela irá sair, como é próprio da democracia.



sábado, 1 de fevereiro de 2014

Beijo gay em "Amor à Vida"

Direito de espernear



por João Marinho

Hoje, meu esporte favorito não foi a natação, mas ler os comentários homofóbicos em todas as notícias que deram destaque ao primeiro beijo gay em uma novela global, na internet. Nervosíssimos, os homofóbicos chamaram a Globo de "esgoto" para baixo... Além do conhecido discurso de "destruição da família", da "moral" e da "defesa de crianças" – que nem deviam ver a novela dada sua classificação indicativa. Né?

Existem algumas coisas nessa história do beijo que merecem ser lembradas. Postei, no meu Facebook, que não acreditava que ele sairia. Mantive essa posição até o final, sem arrependimento.

Isso porque não era simples pessimismo meu. A Globo tinha um histórico nada agradável de acenar com possibilidades de beijos, inflar a audiência e deixar os apoiadores vendo moscas ao fim do capítulo.

Além disso, sempre houve receio por parte da Globo de perder seu público conservador – que tem importância em um momento em que a tevê aberta perde audiência e enfrenta a concorrência de outros meios de comunicação e da tevê a cabo.

Essa perda de audiência da tevê aberta, se considerarmos a migração para a paga, a rigor, não significa propriamente perda para a Globo, que, via Globosat, detém a maioria dos canais pagos e é acionista da NET, principal e mais lucrativa operadora no Brasil. No entanto, a Rede Globo continua sendo seu carro-chefe e a principal geradora de receitas via comerciais e patrocinadores. Portanto, é algo para se levar em conta.

Ademais, ao que tudo indica, a Globo decidiu liberar o beijo apenas na reta final. Há pouco mais de duas semanas, um colega de profissão meu correspondeu-se com Walcyr Carrasco sobre o beijo, e o próprio autor lhe dissera que não tivesse muitas esperanças.

Tudo aponta que a cena do beijo foi liberada após enquetes, pesquisas de opinião e análise da receptividade do público indicarem que era uma zona de baixo risco. A Globo já sabia que Amor à Vida vinha registrando mais audiência que sua antecessora, Salve Jorge. Já sabia que o público se apaixonara por Félix, a "bicha má", e que tinha recebido bem sua regeneração. Já sabia que os telespectadores estavam mais ligados no final amoroso de Félix que no de Paloma. Primeiro, com o mecânico que traçava tudo que "caía na rede". Depois, com o Niko bonzinho, que, paulatinamente, caiu nas graças do público e virou a mocinha carismática da trama. Faltava saber se o público aceitaria o beijo. Como a resposta foi sim, liberou.

Por isso, não é bem verdade que a Globo deu um "tapa na cara da sociedade". Antes, andou ao lado dela. Se fosse o oposto, seríamos frustrados, como em América.

Agora, verdade seja dita, isso não tira o brilho das cenas finais, tanto pelo beijo em si quanto pelo espetacular fim em que César aceita o filho gay e, pelo amor, supera sua homofobia. O recado foi dado na trama: o amor existe em diferentes cores e em diferentes tipos de família (vide a família de Niko, com seus dois filhos), e não é a homossexualidade que "destrói" família alguma: é a homofobia.

Os LGBTs, os mais fundamentalistas parecem se esquecer, não nasceram de chocadeiras e nem brotaram da terra. Nascemos em famílias, muitas das quais nos fazem experimentar a dor do preconceito muito antes que as pessoas de fora, exatamente como ocorreu com César e Félix. É isso, e não a homossexualidade, bissexualidade, travestilidade ou transexualidade, etc. em si, que destrói os lares. Quando o membro gay é aceito e recebido no seio familiar, a convivência, a harmonia e o amor se estabelecem, e ele se torna um membro tão importante e tão ativo na família quanto qualquer outro. Com isso, LGBTs e família só têm a ganhar.

O fato de que a maioria do público percebeu essas mensagens – que são reais! – e, sem titubear, apoiou o final feliz de Félix, Niko e do pai César, torceu por um beijo e até fez campanha por isso, embora indique que a Globo não andou em terreno movediço, é, de sua parte, uma vitória.

Os religiosos fundamentalistas e os conservadores aguerridos, homofóbicos, com seu discurso "pró-família" reduzido (porque despreza todos os outros tipos de família, inclusive as que contam com membros LGBTs) e seus argumentos falsamente construídos sobre a ideia de "moral" e "bons costumes", sempre gostaram de pensar que mobilizavam a "maioria" da sociedade contra uma ideia, igualmente falsa, de "ditadura gay".

Em todas as pesquisas ou enquetes que pude consultar, a maioria, na ordem de 60% em média, na verdade, apoiou os personagens e o beijo, e a audiência tampouco caiu por causa disso. Uma minoria de 40% – jogando alto, porque nem todos que eram contra o beijo eram necessariamente contra os personagens e a abordagem sobre homossexualidade e homofobia construída por Carrasco – é ainda grande coisa, mas mostra que, na verdade, os preconceituosos não têm todo esse poder de mobilização.

Nem o boicote puxado por evangélicos (fonte: Gnotícias) funcionou. Uma estranha campanha. Afinal, foi só um beijo. Estranho é que assassinatos, intrigas, tapas, brigas, traições, que ocorreram na mesma novela, sejam aceitos e ninguém pense em boicote por causa disso.

Isso, para esses grupos que sustentam a discriminação, é tão ou mais dolorido quanto o beijo em si. Sempre falaram em nome de uma "maioria" que se mobilizaria contra a "minoria" interessada em estabelecer uma "ditadura gay". Ao que parece, a verdadeira minoria são eles, que querem, isso sim, estabelecer uma ditadura religiosa e moral – e os demais não querem.

Já argumentei, certa vez, que a luta contra a homofobia é também uma luta pelos corações. Quando uma sociedade toma o caminho do respeito e da tolerância majoritárias, isso torna mais simples e mais sólida a consecução de direitos civis e fundamentais. Quando o preconceito e a discriminação são acuados, fica mais simples instituir a diversidade como um valor, que realmente é.

Por isso, ainda que não mudem, a rigor, o outro lado da luta, contra as agressões, contra os assassinatos, contra o sequestro da política pelos fundamentalistas, são importantes essas ações culturais – e, por isso, torna-se tão gratificante vê-los espernear. Pelo menos, por um dia.