domingo, 17 de abril de 2005

O INFERNO

Uma vez escutei um argumento que dizia, que como cristãos, deveríamos ter por excelência a crença no inferno como um lugar do castigo divino e, nas várias tentativas de se provar a premissa se encontrava o respaldo escrituristico. A principio, tudo muito óbvio, condizente com um maniqueísmo ocidental; nas divisões do que é bom, belo; contra o que é mau e tenebroso.

A questão é muito sutil, e também muito perigosa, principalmente, quando encaramos o símbolo inferno, com suas significações e seus significantes dentro da cultura cristã. Primeiramente, os aspectos populares são, em demasia, distorções apelativas de crendices e superstições, alimentando o imaginário coletivo com o medo (forma de castração e submissão da vontade), e com o ódio (aspectos vingativos e individualistas, infantis, da vontade mal trabalhada). Na questão do medo, a presença de uma crença do inferno como tal é imprescindível, principalmente para o culto religioso em si. O sagrado não sobrevive sem o profano; a religião perde o sentido sem o seu inimigo externo, porém comum. É impossível assegurar a vontade submissa de uma multidão de fiéis, sem os aspectos punitivos daqueles que se encontram na contra-mão da ideologia, podendo destruir a ação manipuladora dos lideres religiosos. Nesse momento, é o inferno que interage com a culpa e o medo, assegurando o cumprimento da realização das atitudes dos crentes, dentro daquilo que se é proposto e programado. Na questão pessoal, o inferno sempre funciona como a arma dos covardes, alimenta sentimentos que colocam a humanidade em retrocesso, não permite o crescimento existencial do individuo em si, por acorrentá-lo em sua própria pequenez. Na maioria das vezes, quando se tem ódio de uma pessoa, o primeiro lugar que se deseja o estado dessa mesma é no inferno! O inferno se transforma na vontade sombria, e destrutiva do homem, conduzindo uma mentalidade infantil e mística; lugar onde sempre serve para a habitação infeliz dos outros, mas nunca do sujeito que o conjura aos demais.

Segundo, são os aspectos estéticos da própria teologia, que também se apresentam com sutileza, entretanto não significa que tal sutileza estética deva, por um simples momento harmônico, conduzir toda uma interpretação mitológica, fantástica e sensacionalista como realidade escatológica. Desde a crença do Deus como sumo bem, a dicotomia entre o que é mal e tenebroso teve que ganhar espaço para harmonizar o sistema. Deus como aquele que está no controle de todas as coisas, não poderia admitir, nessa construção, uma interpretação fatalística como obra do acaso. Entretanto, o mal não poderia ser praticado por aquele que só é o bem; nisso o sistema teve que harmonizar o porquê do mal, e de sua manifestação e o seu fim, uma vez que somente Deus é eterno, jamais, o mal poderia coexistir com o que é o Sumo Bem; ele teria que ter o seu cessar. E, o seu cessar é o próprio inferno em si, que nessa teologia, seria o lugar onde não se encontra a presença do Deus; no inferno estaria (ou seria) a total ausência do bem, o lugar onde Deus não está. Obviamente, que tal interpretação é mais poética do que teológica em si mesma. Além de negar aspectos do próprio Deus e seus atributos; uma vez em que, se acredita na onipresença como aspecto constitutivo da divindade- Deus Criador- tal ausência do Deus como realização do inferno é contra-senso. Deus como ser onipresente é aquele que se encontra no mais alto céus, como no mais profundo dos abismos (Gn 1,2. Sl 107. 135,6. 148). O próprio credo cristão traz a afirmação do Cristo como aquele que desceu ao inferno, à mansão dos mortos, aferindo, assim, sinais de sua presença, senhorio e poder. No mais, tudo aquilo que existe, existe no Deus, ele não é apenas o criador por excelência de todas as coisas, como é o sustentador de tudo o que existe (Jo 1, 1-3), nesse aspecto é incompreensível à existência do inferno como uma categoria à parte; isso seria a possibilidade de existir algo fora do próprio Deus, igualando- se, assim, a possibilidade de uma potência criadora como o Deus, ou mais um Deus, auto-suficiente em si mesmo.

A crença no inferno, nem sempre foi a crença em um lugar de castigo, juízo, punição e lamentação. No Antigo Testamento, o inferno se apresenta como um lugar dos mortos. Não havia distinção dos mortos, tanto os maus como os bons se encontravam na mesma condição, ou seja, habitantes do Xeol, do inferno. A idéia é que a morte constitui o fim de tudo; não há lembranças de nada; não há louvores a Javé (Is 35,15. Sl 6,5); não há obras, nem pensamentos, nem conhecimento, nem sabedoria alguma (Ez 9,10). Constitui, assim, o fim de tudo, donde ninguém volta (Sl 55,16. 89,49. Jó 7,9), para onde vão todos os seres humanos e animais, quando morrem. Mais tarde, a idéia do Deus como senhor do Xeol surge, e o próprio Deus poderia retirar um morto de lá. No advento da teologia da retribuição, a idéia do Xeol ganhou um novo sentido, passando a existir dentro dele uma região mais profunda, onde ficam os maus: geena, palavra grega, derivada do aramaico, que significa vale dos filhos de Hinom. Um ponto limítrofe entre Judá e Benjamim, que, nos últimos livros do Antigo Testamento é amaldiçoado por ser lugar onde eram oferecidos sacrifícios humanos (Jr 7,31. 19,2. II Rs 23,10. II Cr 28,3). Por causa desse culto, Jeremias amaldiçoou o local e, preveniu que seria um lugar de morte, de corrupção e destruição (Jr 7,32. 19,6). Desde então, geena passou a ter um conceito de lugar de punição após a morte.

Já no livro de Daniel 12,2, o Xeol traz sua interpretação apocalíptica, bem provável que tal livro tenha data recente (III-II séculos a.C), não é de se estranhar o desenvolvimento do juízo como castigo aos maus. Também em Isaias o Xeol ganha o conceito do lugar de sofrimento eterno (Is 66,24). Esses elementos serão usados no Novo Testamento na pregação de Jesus. Como homem de seu tempo, Jesus usou os conceitos de sua época para falar aos seus. A marca apocalíptica desde os Macabeus trouxe austeridade na teologia judaica, transformando todo o escaton em uma trama de conflitos, que em seu paradoxo, mostra um breve triunfo do mal, mas assegura a perseverança e esperança na reviravolta na história em favor do povo sofrido, que é movido pelo poder do Deus. Marcada por tal apocalíptica judaica, a pregação do Cristo reflete tais concepções: urgência de conversão; imediatismo da irrupção do Deus na história como juiz e iminência do fim. A partir da apocalíptica judaica o Inferno ou Xeol é o lugar do sofrimento eterno para os ímpios e pecadores; lugar da justiça e manifestação da ira divina.

A sutileza conceitual permeia uma concepção errada da justiça. Ainda, nos aspectos teológicos, o homem é corruptível, injusto, maculado, imperfeito. Sendo assim, por mais que se queira arrazoar sobre os aspectos da justiça, só podemos falar nos aspectos dessa justiça realizada, sendo a vindoura um total eclipse de hipóteses. Dentro da justiça realizada temos o Cristo; aquele que faz a denúncia na cruz pelos excluídos. O mesmo Cristo que se solidariza com a humanidade, nela se revela e, nela traz a redenção por meio de sua graça, que se estende a todos. Portanto, ainda que o inferno seja uma possibilidade, nos textos apocalípticos, ele apenas comunica o desejo de uma justiça pessoal, maculada, corrompida, injusta e transgredida. Por mais que seja a esperança dos que sofrem a perseguição, sendo a possibilidade de se ver o findar de todo o mal, isso tudo, carrega, também, os aspectos da vingança, do desejo da autojustiça. Enfim, o mal se finda, e aqueles que o praticaram, dentro dos conceitos falhos, de um código moral pessoal e relativo, continuarão sofrendo o mal, ardendo eternamente no fogo, sofrendo eternamente as dores de uma justiça desejada mais por vingança, do que por esperança, mais por destruição, do que por aquilo que rejeitaram, mais por carnificina, do que pela própria justiça.

Ao falar de inferno, com certeza, deveríamos tomar por base a justiça que se realiza. São nas bem-aventuranças, que o Cristo proclama que aqueles que têm fome e sede de justiça serão saciados, pois esses que têm a fome e a sede de justiça, são os mesmos pobres de espírito que, anseiam à necessidade do Deus e no seu reino, os valores que podem vigorar, surgindo uma nova sociedade. Não se vê, aqui, um caráter destrutivo, com vingança e ira, mas conversão. Entretanto, àqueles que rejeitam tais possibilidades de conversão, já possuem, também, a recompensa em seus próprios corpos (Mt 6,1-3). Ou seja, já vivem o inferno, aqui, não o inferno criado como lugar de vingança, de punição e de castigo, ou lugar de ausência do Deus e de sua graça, mas o inferno de si mesmo, da alienação existencial, da pequenez humana, e da autodestruição, a aniquilação, que não é um castigo, mas a escolha daqueles que optam por não permanecerem na vida, por não se ligarem, novamente, ao fim último de todas as coisas; o Ser em si; o Infinito, o Totalmente Outro, ou simplesmente, Deus. O inferno não existe, nem precisa existir, essa é uma categoria humana, que expressa o sentimento sombrio da vingança e, que é contrário ao sentimento do Cristo, que até mesmo na cruz, quando se fez solidário: o grito dos excluídos, perdoou aqueles que o ofenderam, pois ele já sabia, que eles possuíam, já, as suas recompensas. Diferente daqueles que abraçaram a graça, e se realizarão na plenitude do que há de vir.

Por: Renato Hoffmann

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