quinta-feira, 30 de abril de 2009

Consideração sobre um comentário "Anônimo"...

Por João Marinho; colunista e co-administrador deste blog
Recentemente, publicamos uma notícia neste blog informando que, na Itália, 40% das pessoas apoiam o casamento gay [leia a referida postagem]. Como acontece com costumeira frequência em notícias do tipo, houve reações contrárias, especialmente ao uso da palavra "casamento" para designar a união entre pessoas de mesmo sexo. Um dos comentários maiores e, por isso, mais interessantes, não foi infelizmente assinado, sendo que por isso vou referir o autor como "Anônimo", tal como o sistema do Blogger identifica [leia o comentário do Anonymous].

O comentário é interessante porque reflete uma forma muito corrente de pensar a questão do casamento, especialmente entre evangélicos de denominações tradicionalistas, mas que é pontuada de equívocos - e, para ficar mais inteligível, vou destacar as partes mais importantes, escrevendo o contra-argumento em seguida.

Sinceramente, espero que isso nunca se concretize.

A princípio, uma informação. Mesmo sendo do desejo do Anônimo que o casamento gay "nunca se concretize", isso já não é possível. Já há países que possuem casamento gay, efetivos, com todos os direitos e deveres atinentes a essa condição, injustificando, portanto, uma outra denominação para a união entre pessoas de mesmo sexo. É o caso, por exemplo, da Espanha, do Canadá, da Holanda, da Bélgica e da África do Sul. Na própria Espanha, o casamento é definido, em texto legal, como a união entre duas pessoas, desprezando a que sexo elas pertencem


Os gays podem se ajuntar na forma que quiserem, mas, casamento de verdade, somente entre homem e mulher, que podem procriar e dar continuidade à espécie humana de forma natural (e não por inseminação artificial) e prevista por Deus. Já pensaram se na origem da humanidade só tivesse gays? Ou se todos os primeiros descendentes de Adão e Eva optassem por serem gays (mesmo que fosse genético) [...]? Estaríamos aqui hoje? Acho que não... Não terí­amos filhos e, consequentemente, a humanidade que hoje povoa a Terra simplesmente não existiria.

Parece haver lógica nesse argumento, mas, na verdade, existe aqui uma mistura de conceitos e uma falta de densidade racional. Em primeiro lugar, é simplesmente equivocado relacionar o casamento, qualquer que seja ele, à preservação natural da espécie humana, como se uma coisa levasse à outra, ou fossem interdependentes.

Deixemos uma coisa bem clara: animais, plantas, bactérias, vírus não se casam - mas se reproduzem e se perpetuam - e, por sinal, podem se reproduzir de formas bem diversas da que aprendemos como "natural", a reprodução sexuada macho-fêmea. Existem seres hermafroditas, seres que se reproduzem por partenogênese, seres que se reproduzem por mitose e uma série de outras estratégias.

O casamento, portanto, é uma instituição exclusivamente humana e, dessa forma, é antes de tudo, histórico-social. Ou será que já vimos uma leoa de véu e grinalda na frente de um sacerdote fazendo votos? Ou ainda uma bactéria assinando um contrato civil de união (que é o casamento civil) ou um bonobo negociando um acordo pré-nupcial?

Em termos naturais e de preservação da espécie, pouco importa que exista essa instituição. Se o casamento, hétero, fosse abolido em todo o mundo, a espécie humana ainda se reproduziria, bastando para isso que homens solteiros transassem com mulheres solteiras. É o sexo heterossexual, e não o casamento heterossexual, que é imprescindível ao encontro dos gametas e à geração de descendentes (se, como quer o autor, excluirmos a inseminação, de toda forma também buscada por héteros, vale ressaltar).

Sendo, portanto, o casamento uma instituição histórico-social, e, portanto, criada por humanos e totalmente artificial, o conteúdo desse conceito é dado exclusivamente pelos humanos. A própria prova é a existência do casamento civil, que é a modalidade que gera efeitos no Brasil, sendo que é absolutamente impossível fazer qualquer relação direta entre assinar o nome num papel em frente a um juiz de paz lavrado em cartório e transar para engravidar. A dissociação é tão grande que casais héteros podem ser casados - e optar por não ter filhos.

Assim, os seres humanos podem chamar de casamento o que quiserem, inclusive a união entre pessoas de mesmo sexo. Um exemplo prático: se o que existe na lei é um contrato civil que recebeu o nome de casamento, e a lei habilita casais de mesmo sexo a estabelecer esse mesmíssimo contrato, não existe nenhum argumento plausível para chamá-lo de outra forma.

Apelemos, no entanto, para a religião. Um erro comum dos evangélicos é considerar o casamento (religioso, ou seja, a união frente a uma divindade) como um mandamento divino em si mesmo. Isso pode ser verdade - mas é uma "verdade local". É verdadeiro apenas para os evangélicos, dentro do sistema de fé deles, e dentro de uma cerimônia particular entre eles.

O casamento religioso em si, entendido como união frente a uma divindade, existe anteriormente ao advento do cristianismo e dos mandamentos que os cristãos crêem ter partido de seu Deus. Ele também não foi e nem é exclusividade cristã.

Os "idólatras", adoradores de outros Deuses, também se casam, de forma religiosa, em cerimônias que são dedicadas a esses outros Deuses, e não ao Deus que os cristãos reputam como verdadeiro. Mesmo membros do satanismo também se casam de forma religiosa. Membros de outras tradições religiosas abraâmicas que os cristãos consideram heréticas ou equivocadas, como judeus e muçulmanos, também se casam. E, no entanto, nenhum desses outros casamentos podem ser entendidos como uma obediência ao mandamento divino, do Deus "verdadeiro", que mesmo inexiste nesses outros cultos.

O argumento do Anônimo, portanto, para se sustentar, teria de incluir uma incitação polêmica. Se tais outros casamentos não são uma obediência a Deus, mas até mesmo uma "oferenda aos ídolos", eles também deveriam ser evitados. Os cristãos deveriam, portanto, não apenas tentar impedir o casamento de pessoas de mesmo sexo, mas também os casamentos heterossexuais de wiccanos, umbandistas, candomblecistas, judeus, muçulmanos, budistas, etc., uma vez que são uniões celebradas em obediência a "divindades falsas", e não ao mandamento do "Deus verdadeiro".

Tal, porém, não ocorre e talvez porque, nessa hora, porque interessa, os cristãos evangélicos se recordam de que vivemos num Estado laico que garante liberdade de credo. Isso significa, entre outras coisas, que as pessoas podem realizar cerimônias, cultos e acreditar no que quiserem, desde que não firam a ordem pública ou interfiram no direito ou liberdade de outrem.

Então, como diria a própria Bíblia, não dá para ter dois pesos e duas medidas. Ou se aceita que todos os casamentos não-cristãos são inerentemente inválidos e falsos. Ou se aceita o princípio do respeito à liberdade religiosa que, por definição, inclui o respeito ao casamento religioso gay.

Afinal, se os membros de um determinado credo crêem que a divindade daquela religião não apenas apoia a homossexualidade, como permite que homossexuais se casem, que argumento teriam os evangélicos para interferir nesse tipo de casamento, se sua divindade é outra e se, "falsidade por falsidade", tais evangélicos admitem que a cerimônia transcorra, e seja válida, entre heterossexuais, mesmo "sabendo" que a divindade é, dentro da doutrina cristã, falsa e que não é o mandamento do Deus cristão que está sendo seguido? Acaso, os cristãos evangélicos querem ter o monopólio sobre Deuses em que não acreditam e nos quais não crêem?

O ponto nevrálgico, no entanto, é que o mesmo argumento é válido para denominações inter-cristãs. Se uma denominação cristã, adotando uma determinada linha de interpretação, entende que Deus nada tem contra a homossexualidade e que o casamento entre gays é válido, o mesmo direito há de ser garantido de realizar esta denominação a cerimônia. Portanto, o casamento hétero como mandamento divino para evitar a união gay com esse nome não se sustenta de forma racional, lógica, religiosa e muito menos de respeito à fé das pessoas, se tratado com abrangência com que se deve.

Finalmente, o terceiro equívoco, que retorna o argumento da reprodução. É um erro constante acreditar que a reprodução humana dependa da heterossexualidade. Lembremos, antes de tudo, o que define orientação sexual: é a atração físico-afetiva, o desejo erótico orientado (daí, o "orientação") a alguém de determinado sexo. A heterossexualidade, portanto, não é o ato sexual hétero. É o desejo que nasce entre os héteros e que pode, ou não, levar a esse ato consumado. O mesmo se aplica à homossexualidade e à bissexualidade.

"Pode ou não" tb tem importância porque, ao longo da vida, as pessoas muitas vezes praticam relações sexuais não-condizentes com suas orientações sexuais primárias. Não são poucos os gays que já se relacionaram sexualmente com mulheres, lésbicas que já foram casadas com homens heterossexuais, homens héteros envolvidos em experiências de troca-troca ou relações com travestis, mulheres héteros que já se agarram com uma amiga em um "momento de fraqueza".

Ora, creio que nenhum ser humano racional pensará que o desejo, sozinho, produza descendentes. Quando muito, ele apenas auxilia a chegar até lá, mas não basta desejar o homem uma mulher (heterossexualidade) para que tenha filhos com ela. É o ato sexual objetivo que produz. Logo, a heterossexualidade, sozinha, nada produz. É a relação sexual objetiva, desprotegida e em período fértil entre um homem e uma mulher que produz descendentes.

É importante destacar isso e o "pode ou não" por dois motivos: primeiro porque (1) apenas haver héteros não é garantia de reprodução e preservação da espécie. Basta apenas que os héteros decidam não ter, ou não possam (caso dos estéreis e idosos) ter filhos, ou ainda não estejam em período de fertilidade; (2) gays são homens e lésbicas são mulheres. Desde que não haja problemas de fertilidade, isso os credencia amplamente a propagar a espécie, bastando para isso que se relacionem entre si, mesmo eventualmente, sem que, para isso, abram mão de sua orientação sexual. Com efeito, não é raro encontrar gays e lésbicas que já foram casados heterossexualmente e têm descendentes biológicos - e, no entanto, são gays e são lésbicas.

Portanto, o que aconteceria se os descendentes de Adão e Eva fossem todos gays - para além do fato de que Adão e Eva é um mito, e não um fato histórico -, como sugere o Anônimo? A humanidade desapareceria? A resposta é não.

Certamente, essa condição levaria a uma estrutura social que incluiria o sexo hétero como forma de reprodução, mormente em cerimônias específicas. Para não dizer que isso é conjectura, uma boa lida nas práticas sociais do povo etoro seria interessante ao autor. Povo de prática homossexualista, os etoros reservam o sexo hétero a apenas algumas ocasiões específicas que não passam de alguns dias por ano. Isso não os impediu de se reproduzirem e se manterem, existindo até hoje, ao passo que outros povos de práticas heterossexualistas disseminadas, como os antigos romanos, desapareceram. Outros povos que podem ser chamados "ao banco de testemunhas" seriam os gregos e os antigos japoneses, que resolveram a questão de uma forma ritualística.

Quando muito, talvez uma humanidade gay crescesse apenas mais devagar. O que parece desvantagem, no entanto, seria uma ótima notícia num mundo superpopulado com mais de 6 bilhões de habitantes, alterações climáticas, aquecimento global e extinção de espécies causadas por esses mesmos 6 bilhões. Além disso, como parece haver uma menor tendência homossexual, no caso masculina, ao belicismo e ao conflito, é possível que esse crescimento mais devagar fosse compensando por um menor número de mortes de homens jovens em idade reprodutiva e passível de gerar descendência, mesmo que essa tendência "à briga" tenha, como acredito, origens plenamente sociais.

Então, sim, a humanidade existiria e sim, provavelmente, estaríamos aqui.

Os demais argumentos tecidos pelo autor são repetição dos acima refutados e, portanto, não carecem de melhor exame. Em relação especificamente às supostas passagens bíblicas "condenadoras da homossexualidade", fica a sugestão de ler o estudo bíblico já disponibilizado neste mesmo blog e tão bem conduzido por Renato Hoffman, e posts de colaboradores.

Concluindo: ao contrário do que acredita o Anônimo, não, ele não foi NADA claro.

Um comentário:

  1. João, meu amigo João... Seu texto está brilhante! Fiquei sem palavras, inclusive, para elogiar egrégia reprodução intelectual de sua parte. Meu caro, você arrasou, mas isso é minimalista diante da grandeza textual exposta nas páginas deste blog.

    Velho... PARABÉNS mesmo!!!!

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