segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Barreiras caem à medida que a sociedade muda na China

Fonte: UOL

Howard W. French
Em Xangai (China)

china

  • "A China é o cenário da mudança mais rápida e transformadora do que qualquer país grande do mundo hoje"

O aperto da hora do rush simplesmente diminuiu naquela sufocante noite de verão quando entrei no vagão de metrô da linha circular, que serve o centro da cidade, e faz parte do brilhante sistema de transporte público que Xangai construiu do dia para a noite.

Com calor e cansado depois de horas fotografando nas ruas, fiquei aliviado ao encontrar um assento vago perto da porta e logo me sentei, aproveitando a brisa refrescante do ar condicionado.

Um momento se passou antes que eu olhasse para cima e prestasse atenção aos outros passageiros. Como estrangeiro solitário em situações como esta, eu havia me acostumado durante minha estadia na cidade a ver todos os olhos focados em mim. Desta vez, entretanto, os passageiros tinham uma coisa muito diferente das situações cotidianas de suas viagens para olhar, em vez de mim.

Sentadas à minha frente, duas garotas adolescentes se beijavam de forma muito romântica. Elas não pareciam ter mais de 17 anos. Uma delas, mais forte e com cabelo curto, tinha roupas e corte de cabelo em estilo masculino. Sua companheira de cabelos longos, que estava vestida com uma bonita saia pastel, era o retrato de uma adolescente clássica de antigamente.

Tentei fazer o que percebi imediatamente que poucos dos meus companheiros de viagem eram capazes de fazer: não olhar. Mas enquanto as observava de tempos em tempos, percebi que entre outras coisas, entre os toques e trocas de carícias constantes, havia uma provocação intencional, mesmo que leve, acontecendo diante dos meus olhos.

A atitude delas parecia dizer: “Esta é uma nova época, e as pessoas de nossa geração são livres para fazer o que quiserem em suas vidas amorosas, então acostumem-se.”

Se tornou um truísmo dizer que a China contemporânea é o cenário da mudança mais rápida e transformadora do que qualquer país grande do mundo hoje. Normalmente, a discussão se concentra na indústria e no comércio, ou na conquista chinesa de novos mercados em regiões longínquas, ou talvez no tema mais comum de todos, na impressionante entrega de obras de infraestrutura, como o metrô em que eu estava, que faz com que o antigo e pioneiro metrô de Nova York, onde eu moro, passe vergonha.

A cena diante de mim é foi um chacoalhão para lembrar que a transformação material da China é a menor de todas. À medida que a sociedade enriquece rapidamente, seu tecido social e sua moral vem mudando de forma bem mais dramática do que o cenário material, e a escolha sexual e a expressão talvez estejam na liderança dessa mudança brusca.

Lugares como Xangai, uma ilha de certa afluência, fornecem uma visão privilegiada das mudanças que estão acontecendo. Quando morei aqui entre 2003 e 2008, a surgimento público dos homens gays se tornaram uma fato cada vez mais evidente na vida cotidiana. Na maioria das vezes, pelo menos até onde as histórias cotidianas podem confirmar, o número de relacionamentos entre mulheres estava bem atrás.

Voltar a Xangai todo verão desde então fez com que minha percepção da mudança social ficasse mais aguçada. No ano passado, observei pela primeira vez o que aparentemente eram casais de lésbicas, em um número considerável. Tenho memórias vívidas, em particular, de um jantar uma noite num dos meus restaurantes favoritos, onde duas mulheres de quase trinta anos, vestidas como executivas, começaram a se abraçar de forma cada vez mais apaixonada.

Houve outras cenas como esta que eu guardei na memória e não pensei muito até voltar para a cidade em junho e começar a encontrar exemplos de intimidade entre mulheres em público. Também comecei a perceber uma predominância bem maior do que eu achava que era um estilo masculino para as mulheres, o que alguns amigos chineses dizem que encontra um paralelo no surgimento de um estilo unissex que se tornou muito popular entre os homens jovens.

Será que houve uma grande mudança aqui num período tão curto de tempo? “Durante os últimos dez anos vimos uma abertura para muitas vozes que antes eram proibidas ou reprimidas em torno da sexualidade, e a homossexualidade é uma delas”, diz Lucetta Kam, professora associada da Universidade Shantou, especializada em estudos de gênero. Como causa ela cita a influência da internet, que “aumentou a conexão em redes sociais de pessoas com experiências, aspirações e modo de pensar semelhante.”

Kam também citou a atenuação das “restrições ideológicas”, que se seguiu ao rápido declínio da ideologia em quase todos os aspectos da vida chinesa. Mais interessante para mim, entretanto, foi ela mencionar a “repentina exposição midiática de gays e lésbicas” no horário nobre da televisão da China.

De acordo com Feng Hui, estudante de 18 anos que se diz lésbica, a quem eu conheci num shopping center, houve uma ruptura fundamental em 2005 com a vitória de Li Yuchun, a vencedora de 21 anos do concurso “Super Girl” chinês, um programa de talentos como o “American Idol”, mas sem continuação. Durante todo o programa Li, que evitou questões sobre sua sexualidade, usou cabelo curto e se vestia com roupas masculinas. Além disso, ela venceu cantando músicas de amor escritas para homens sobre mulheres.

“Super Girl” teve mais de 400 milhões de espectadores, e a votação foi o maior exercício de voto já feito na China. Depois da vitória de Li, as autoridades classificaram o programa como vulgar, mas ela continuou desempenhando papeis importantes na propaganda e no cinema aqui, e continuou fiel ao seu estilo.

“Li Yuchun é a mãe da China unissex, e o fato de ela estar confortável consigo mesma inspirou toda uma geração de mulheres como eu”, disse Feng.

Outra pesquisadora da sexualidade daqui, Zhu Jianfeng, da Universidade Fudan, é mais reservada quanto ao papel de Li Yuchun, mas concorda que as coisas estão mudando rápido. “A sociedade se tornou muito mais tolerante do que no passado, e menos pessoas irão confrontá-lo e dizer: 'Como você pode viver desse jeito?'”

A última barreira continua sendo a família, diz ela. “As pessoas podem ser abertas quanto à sua sexualidade com os amigos, mas dentro da família ainda é incomum.”

Tradução: Eloise De Vylder

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