Com a equiparação das relações homoafetivas com as uniões estáveis, vivenciadas pelos casais heterossexuais, e com o reconhecimento pelo STF (Supremo Tribunal Federal), corte máxima do poder judiciário no Brasil, alguns cristãos começaram justificar um tanto de coisas para não serem confundidos com preconceituosos, ou ainda, numa tentativa de maquiagem da repulsa, começaram fazer distinção entre as uniões homoafetivas e as uniões bíblicas.
Numa dessas, tomei conhecimento de um texto intitulado: “Daí aos gays o que é dos gays e a Deus o que é de Deus”.
O autor, em seu argumento, diz que Jesus fez uma separação do que é político e do que é religioso; não se posicionou em questões políticas, mas não deixou de pontuar o que era concernente ao reino de Deus. Faz uma separação entre a Igreja e o Estado, alegando que civilmente os gays têm direitos e estes devem ser a eles aplicados, mas, concernente ao reino de Deus, não serão considerados como ENTIDADE FAMILIAR, pois a família foi instituída por Deus entre um homem e uma mulher, sendo este um princípio das Escrituras.
Bem, primeiramente não concordo com o pressuposto de onde foi embasado o argumento: “Gays aos gays, Deus a Deus”. Muito claramente Jesus não se esquivou do debate, quanto, muito menos deixou de ser um crítico das ambições humanas naquele contexto. Os fariseus foram testar Jesus na questão; se Jesus se pronunciasse contra os impostos, ele estaria se pronunciando contra Roma, poderia ser julgado e morto por isso; se Jesus autorizasse os impostos o povo ficaria decepcionado, pois ele afirmaria a dominação romana sem restrições sobre os judeus.
Jesus pergunta de quem é a face impressa na moeda, eles respondem: “é de César!”. E então Jesus acode: “Daí a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.”.
Para Deus não é uma moeda, ou os impostos, mas é toda a vida em sua plenitude, é toda a consciência transformada e voltada para o reino de Deus. Jesus sempre disse dos perigos das riquezas e, definitivamente, o sistema financeiro dos homens, a face de César, não faz parte do caráter do Reino que é partilha do pouco para todos... Como foi na partilha dos cinco pães e dois peixes alimentando a multidão; como é a partilha para o ladrão que te rouba uma túnica e você entrega a outra também; como é a partilha daquele que te esbofeteia na face esquerda e você oferece à direita; como é partilha ao que te obriga a caminhar uma légua e você caminha duas.
Como é a partilha da vida que na cruz se dá por todos sem distinção para a salvação. Jesus não ajunta em celeiros, sua economia é a do bem comum. Aquilo que é de um é de todos, pois quando o homem ajunta, ele traz consigo a ganância, o individualismo, a posse. Jesus é sinônimo de partilha, de fruição comum e não restrita. Dele são as palavras: “Buscai primeiro o reino de Deus e a sua justiça e todas as coisas vos serão acrescentadas.” O reino de Jesus é o reino de Deus que não é desse mundo; sua lógica é inversa! Não é o império romano nem a política dos judeus que servem ao reino de Deus, pois a lógica deles é a do ter, mas a do Reino de Deus é a do SER em partilha como a imagem do próprio Deus que é trino, em que, cada pessoa se partilha uma nas outras, se doa uma nas outras, sendo uma única substância, tudo entre eles é partilhado e sentido. Assim é o Reino, assim deveriam ser homens do Reino.
Quando Jesus afirma: “daí a César o que é de César”, ele está dizendo que o que é de César não é de Deus! Quando o autor do texto diz: “daí aos gays o que é dos gays”, ele está tentando dizer que os gays não são de Deus... O que fica evidenciado, imediatamente, no argumento posterior quando aufere: “se você me perguntar se um casal gay pode ser considerado uma entidade familiar eu lhe direi que não, pois isto fere um princípio das Escrituras onde Deus estabelece a família como sendo a união entre um homem e uma mulher.”.
Princípio da Escritura? Qual princípio? Se essa assertiva for verdadeira eu desconheço o que é a teologia!
Primeiramente, há um único princípio que norteia fundamentalmente a teologia da criação, este, a saber: a remissão! Israel só começou a dizer da criação em textos recentes à época da produção teológica e literária de seu povo como os documentos “P, D”. Ou seja, pouco antes do século VI a.C, Israel é silente quanto uma história da criação. O que é mais curioso, esse fenômeno acontece no meio da vivência do povo hebreu com o cananeu, povo místico de uma esfera religiosa densa. Mas o antigo credo não continha nada sobre criação. A subsistência, a benção e a proteção divinas, para Israel, não provinham de meio mítico como para os cananeus.
Quando a teologia da criação começa ser produzida, ela o é intercalando o pensamento de um Deus que cria no conjunto teológico da história da salvação. Assim homem e mulher são feitos a imagem e a semelhança de Deus como diz o texto de Gn 1, 27. No degrau mais alto da obra criadora, com relação direta, diferentemente de todo o restante da ação criadora que é indireta (documento P). Só que outra curiosidade se estabelece na questão da SEXUALIDADE. Israel SEMPRE AFASTOU INTEIRAMENTE à ideia de sexo e de qualquer função sexual a respeito de Iahweh. O que surpreende pelo contexto, pois os cananeus tinham por princípio espiritual divindades que conduziam a fecundidade, mas para Israel a polaridade sexual era de ordem social e não espiritual, assim, homem e mulher são idênticos no documento P, são imagem e semelhança de Deus.
Já no documento “J” encontramos a sentença: “deixará o homem a casa de seus pais unirá a sua esposa e serão feitos uma só carne”. Mas, também, há que se considerar o fato dessas tradições falarem de uma teologia diferente. A criação da mulher nessa teologia é separada da criação do homem, ela é dada como presente para o homem, no sentido de posse do homem, ela é semelhante ao homem e não IDÊNTICA a ele; uma contradição com o documento “P” em Gn 1,27. Enquanto o documento P se preocupa com o mundo e com o homem no mundo, o documento J se preocupa com o mundo em relação ao homem MASCULINIZADO, tudo girando em torno dele, suas aspirações imediatas, ou seja, a criação está em relação direta e íntima a dominação do homem nela. Aqui não há um princípio “escrituristico”, mas a definição social dos papéis representados na criação e sua função social sem a interferência do divino. Pois, na ordem metafísica do ser, a mulher é um pouco superior aos animais, mas inferior ao homem, sendo para ele auxiliadora. Assim se dá sua constituição e isso não é princípio espiritual, mas é ordem social que exalta a grandeza do masculino sobre o feminino numa identidade patriarcal.
Assim dizer que entidade familiar homoafetiva não é aceita pela Bíblia é o mesmo que afirmar que a entidade familiar heterossexual aceita pelas escrituras tem que submeter a mulher em condição de posse do marido, do homem, do macho, uma exaltação do documento J fora de todo o contexto teológico da salvação. Se tal leitura é superada pela Igreja e pelo cristianismo moderno, qual é a crise em se alargar o contexto da entidade familiar, sendo a leitura literal ultrapassada e sem expressão nos dias de hoje, inclusive dentro da igreja?
Os gays têm direito ao Deus e nenhuma igreja será capaz de dizer o contrário a isso. Homossexualidade não é pecado, Deus não condena as relações homossexuais. A teologia não é posse de denominação institucional nenhuma e, portanto, argumentos como o desse texto “Gays aos gays, Deus a Deus” são menos nobres do que os do Silas Malafaia, ou de Jair Bolsonaro, pois eles são preconceituosos e honestos ao se assumirem assim, mas esse texto é hipócrita e mostra uma discriminação sutil e travestida de aceitação.
Dai aos Gays o que é dos Gays e a Deus o que é de Deus Carlos Moreira Na última quinta-feira, através da publicação da revista Veja, nos deparamos com os detalhes da decisão inédita do Supremo Tribunal Federal sobre duas matérias de suma importância para o povo brasileiro. No julgamento da primeira ação, proposta pelo governo do Rio, o STF reconheceu que as uniões homoafetivas – casais do mesmo sexo – passam a ter os mesmos direitos das uniões de casais heterossexuais. “O objetivo é que os servidores tenham assegurados benefícios como previdência, concessão de assistência médica e licença”. A segunda ação dizia respeito a uma petição da Procuradoria-Geral da República. Ela reclamava “além do reconhecimento dos direitos civis de pessoas do mesmo sexo, declarar que uma união entre estas pessoas é uma entidade familiar”. Essa decisão, na prática, permite que tais casais possam, por exemplo, adotar filhos ou pleitear que seus relacionamentos sejam convertidos em casamentos. Polêmicas a parte, pois após a decisão veio de imediato uma reação política quanto à competência do STF de tratar questões que deveriam ser, prioritariamente, conduzidas pelo Congresso Nacional, o que está diante de nossos olhos é o prenúncio de profundas mudanças que se estabelecerão no cenário sócio-cultural-religioso de nosso país. Colocados estes pontos, surge à questão central da qual trata este artigo: “e nós, na condição de cristãos que somos, como devemos nos posicionar frente a estas decisões?”. Antes de qualquer consideração, quero trazer-lhe uma porção das Escrituras: “Ele lhes disse: "Portanto, dêem a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus" Lc. 20:25. Para que você possa discernir a profundidade e as implicações da resposta de Jesus, é fundamental compreender as funções de duas instâncias político-religiosas da nação de Israel em Seu tempo: o Rei e o Sinédrio. Desde o ano 4 a.C a Galiléia era governada por Herodes Antipas, que reinou até o ano 39 d.C. Ele era um déspota, dono absoluto de tudo, homem que não devia e não prestava contas a ninguém, além de não possuir ética alguma. Mas quem governava de fato a Palestina, desde 63 a.C., eram os Romanos. Herodes era só uma marionete nas mãos do império, um “inocente” útil, uma figura caricata, aparentava ter poder, mas, na verdade, fazia apenas o que lhe era ordenado. O Sinédrio, por outro lado, representava o supremo tribunal dos judeus em Jerusalém, uma espécie de senado, e sua influência se estendia tanto a Judéia quanto a Galiléia, além de possuir o controle do Templo. Sua função primordial era julgar assuntos da Lei quando surgia algum tipo de discórdia e sua decisão era final, não cabendo qualquer apelação. O Sinédrio era composto por 71 membros, sendo a grande maioria pertencente ao partido dos Saduceus, os quais representavam o poder, a nobreza e a riqueza. Agora vamos voltar ao texto. Se você for ler todo o capítulo, perceberá que a discussão de Jesus é com mestres da Lei, sacerdotes e líderes religiosos. Eles queriam apanhar Jesus em algum tipo de contradição, fato que seria suficiente para levá-lo diante do Sinédrio. Por outro lado, se ele cometesse algum tipo de transgressão civil, poderia ser levado ao rei Herodes e este, por sua vez, o encaminharia para ser julgado pela autoridade romana, no caso Pilatos. Mas a armadilha não funcionou. A resposta de Jesus deixou todo mundo de “calça curta”, foi um verdadeiro “xeque-mate”: “dêem a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus". Nela nem se podia encontrar violação contra o império, nem muito menos transgressão religiosa. Eu sempre achei curioso o fato de Jesus não entrar na questão em si, não questionar se o imposto era certo ou errado, justo ou injusto, se seu destino era para realizar o bem ou apenas para servir de instrumento de enriquecimento ilícito de uns poucos. Na verdade, Jesus soube fazer uma dicotomia perfeita: Ele separou a legislação política dos preceitos da religião, e não deixou de pontuar o que era concernente ao Reino de Deus; pôs cada coisa em seu devido lugar! Como devemos nos posicionar quanto às decisões do STF? Bem, antes de dizer o que penso, deixe-me trazer uma questão conceitual importante sobre a diferença que há entre o poder do Estado e o “poder” da Igreja. Citando Gustavo Biscaia de Lacerda, Mestre em Sociologia Política pela Universidade Federal do Paraná, “a separação entre a Igreja e o Estado é um dos princípios basilares do Estado brasileiro e, na verdade, do moderno Estado de Direito. Embora em um primeiro instante pareça que ele refere-se apenas à impossibilidade de o Estado não professar nenhuma fé, ele tem outras aplicações. A separação entre Igreja e Estado não é apenas um princípio negativo, que veda ao Estado a profissão de fé ou à Igreja de intrometer-se nos assuntos estatais; na verdade, o que ele consagra é a laicidade nas questões públicas, no sentido de que não se faz – não se deve fazer – referência a religiões ao tratar-se das questões coletivas”. “Traduzindo em miúdos”, no Brasil, desde a constituição de 1.891, Igreja e Estado são instituições separadas, que possuem suas próprias leis e jurisdições, e que não podem interferir uma nas ações da outra. Eu estou certo de que nós teremos muitos protestos, em todo o país, quanto a estas decisões polêmica do STF. Várias instituições religiosas, tanto católicas quanto protestantes, se manifestarão contundentemente de forma contrária. Meu pensamento, todavia, é diferente, e aqui falo por mim mesmo, não sendo representante de nada nem de ninguém a não ser de minha própria consciência. Parte do texto da ação impetrada pelo governo do Rio de Janeiro diz o seguinte: “... Não reconhecer essas uniões contraria princípios constitucionais como o direito à igualdade e à liberdade, além de ferir o princípio da dignidade da pessoa humana”. Para mim, há duas formas de um cristão se posicionar frente a estas questões. A primeira é reconhecer o direito do Estado de legislar, de agir de forma justa quanto à coletividade, de buscar o bem comum independentemente de raça, credo, cor, orientação sexual, ou qualquer outra questão que produza diferenciação, exclusão ou acepção. Se você me perguntar se eu acho que os gays têm direito a dignidade, direito a receber benefícios aos quais, mediante a lei, façam jus, direito a ser tratados com equidade, eu lhes direi que sim, pois penso ser esta uma questão de Estado e que nos remete ao princípio inalienável da dignidade humana. O fato de discordar da forma como vivem do ponto de vista de sua orientação sexual não é motivo para desejar privá-los de seus direitos civis. E mais, acho que eles possuem os mesmos direitos dos adúlteros, dos mentirosos, dos facciosos, dos sonegadores do imposto de renda, dos avarentos, dos egoístas, dos jactanciosos e dos fofoqueiros. Fico por aqui para não ter de citar a lista de todos os pecados que cometemos, eu e você... A segunda forma de responder a estas questões me retira do âmbito do Estado e me coloca dentro da “jurisdição” do Reino de Deus. Por esta perspectiva, se você me perguntar se um casal gay pode ser considerado uma entidade familiar eu lhe direi que não, pois isto fere um princípio das Escrituras onde Deus estabelece a família como sendo a união entre um homem e uma mulher. Ainda assim, sei que terei de acatar a decisão do Estado, por ser ela de caráter civil, e por ser o Estado laico, mas dou-me ao direito de, na Igreja, pensar de forma diferente, não estabelecendo, assim, tal decisão como parâmetro ou padrão para a comunidade de fé. Resumindo, eu diria o seguinte: “daí aos gays o que é dos gays e a Deus o que é de Deus”. Não deixarei de pregar que o padrão das Sagradas Escrituras para a sexualidade humana é a união entre homem e mulher, mas também não permitirei que minha consciência seja cauterizada pela caducidade da “letra” que mata em detrimento do Espírito do Evangelho, não me darei ao desplante de "coar mosquitos e engolir camelos", não distorcerei a justiça sendo tendencioso por causa de questões que a Igreja condena, pois quero ser portador da Graça, não do juízo, quero anunciar a Salvação, não a condenação, quero ser instrumento do Amor, não do ódio. 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