Esta é uma entrevista que concedi aos estudantes de jornalismo da Universidade Nove de Julho, para uma publicação de circulação interna da universidade, não sei se foi publicada, mas agora vocês podem conferir aqui:
Você acredita que a imagem do homossexual é muito estereotipada nas novelas? Por quê?
Sim, há um estereótipo forte e contumaz, contudo, ele retrata, ou melhor, ele satisfaz, plenamente, à proposta última desse movimento cultural, filosófico, literário das denominadas novelas. Acontece que esse estilo vem de forma imediata do movimento Romântico (séc. XIX, Inglaterra, Alemanha e França) e o mesmo não era um movimento de ruptura social, pelo contrário, era um movimento burguês de escapismo, utopia, subjetivismo, fantasia, individualismo. A "idealização" do ideal burguês faz parte disso; as coisas não são vistas como realmente são, mas como deveriam ser segundo uma ótica pessoal: a pátria é sempre perfeita; a mulher é vista como virgem, frágil, bela, submissa e inatingível; o amor é quase sempre espiritual e inalcançável; o homossexual, nesse período, é encarado como um doente, uma caricatura, um mal que deve ser combatido. Sem embargo, o Romance projeta o gosto do público burguês; os primeiros romances editados no Brasil, ainda na década de 1830, marcam-se pelo aspecto do folhetinesco. O folhetim, publicado com periodicidade regular pela imprensa, equivale as atuais novelas de televisão e confina com a subliteratura.
Nessa pergunta dois há um paradoxo, por conta de uma fenomenologia social; a abordagem da homossexualidade nas novelas, em princípio, não ajuda a combater nada, afinal, não há uma proposta de quebra de paradigma sociocultural, politizada, uma ideia de ruptura com as estruturas de poder. Não é a proposta do movimento Romântico, não é a proposta de uma novela. Contudo, em contrapartida, existe o marketing, e, sendo ele positivo ou negativo, real ou “caricaturado”, ele traz a figura do gay para dentro da casa de pessoas, fazendo com que este se torne familiar ao ambiente, mais perto da realidade daquele núcleo, que antes fechava tal possibilidade, é algo extremamente ambíguo, afinal, as pessoas que estão nesse ciclo passam a admitir a possibilidade do gay, desde que este esteja na casa do vizinho, nunca na casa deles mesmos. O homossexual nessa perspectiva seria admitido desde que ele seja: o filho do meu amigo, o colega de trabalho, escola, alguém na casa do vizinho ao lado, nunca no meu núcleo, NUNCA MEU FILHO.
Então respondendo diretamente a pergunta, óbvio, que dentro desse contexto fundamentado, a novela ajuda a popularizar uma imagem distorcida de um homossexual, mas não combate a homofobia, ela traz a possibilidade do gay como algo comum (ainda que um bobo da corte, afetado), mas o preconceito continua lá, silencioso, tácito. Entretanto, como ele passa a ser uma realidade presente e possível, torna-se mais fácil discutir o tema HOMOSSEXUALIDADE dentro da coletividade, pois ele passa a ocupar a agenda do dia, mas a novela em si mesma só popularizou algo, a redução do preconceito se da efetivamente no combate da militância e das políticas públicas.
Toda a divulgação realizada pela mídia se torna positiva?
Depende, vários fatores, mas, enquanto tornar comum o homossexual, sim, é positivo esse aspecto.
Penso que o homossexual não pode, e nem deve querer, ser retratado dessa forma. O homossexual deve valorizar seu jeito de ser gay, criar seu universo, e se orgulhar dele, e não ficar mendigando a vivência das marcas estabelecidas do que se tem e se acha, por isso, algo “natural”. Queremos nosso Direito Civil pleno, mas o enquadramento ao estilo hetero de ser não, caso fosse assim, seria melhor transarmos também com pessoas do sexo oposto.
Ser homossexual é algo muito além de curtir o sexo com iguais, mas é ter identidade própria, uma ontologia própria. O homossexual tem uma forma própria de se relacionar, de se estabelecer e se articular. O homossexualidade não é uma forma de desejo (anormal para o heterossexual), não pode ser reduzida a isso, mas é algo desejável, que cada gay deve se orgulhar.
Ser homossexual é ser envolto em implicações históricas; por muito tempo as sociedades heteronormativas condicionaram o comportamento gay às relações casuais, ao desejo, à libido. A imagem de rapazes transando, sem vínculos, apenas guiados a uma satisfação imediata, responderia aos ditames sociais severos, assim, tranquilizaria o senso comum às caricaturas preconcebidas (prostitutos, promíscuos, lascivos, doentes, invertidos, histriônicos). Mas estarrece, quando a homossexualidade passa ser desejada por seus atores, muito mais do que um conformismo, passivo, inexpressivo. Agora ela é bem mais do que mero sexo, ela forma comportamento, modo de vida homossexual. Contudo, esse modo de vida é muito diferente do casal Julinho e Thales em Ti-Ti-Ti, porque esse modo de vida é ideal de uma cultura normativa, diferente daquela que o homossexual, de fato, preconiza, estabelece.
Assim, penso que há um erro de leitura. O gay sendo retratado como um casal tipo hetero é um demérito, um contrassenso, ao estilo de vida gay. A questão não é a caricatura, que é uma forma de deboche, mas também não é o enquadramento de um estilo próprio dos heterossexuais. O estilo gay é próprio, é de identidade, é ontológico, e se estabelece no ORGULHO disso, e não vislumbrei tal feito sendo retratado nas novelas.
Muito boa, foi bem direta e esclareceu muita coisa. Parabéns! Espero que tenha sido publicada. bjo
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