terça-feira, 14 de agosto de 2012

Gays homofóbicos

Gays homofóbicos
Uma verdade inconveniente

por João Marinho

Já devo ter dito que não dou apoio à "tese" de que homofobia é coisa de gay enrustido. Embora haja duas pesquisas que apontam isso, elas apontam hipóteses – e autolimitadas ao público e cultura estudados (faixa etária, localidade, etc.), segundo os próprios pesquisadores, e aos algoritmos que selecionaram alguns dos vários tipos de homofobia.

Politicamente e realisticamente, o discurso é também perigoso. Joga nas costas dos gays a culpa pelo próprio preconceito que sofrem e pelas agressões de que são vítimas, não explica a homofobia que parte das mulheres, despreza os inúmeros fatores culturais e religiosos que dão suporte à ideologia homofóbica e isenta, por tabela, os heterossexuais de toda e qualquer responsabilidade, como se fossem todos anjos de candura e inofensivos.

Isso simplesmente não procede.

No entanto, existe uma verdade inconveniente que, por sinal, ajuda também a mostrar o quanto essa "tese" é falha: existem gays homofóbicos, alguns dos quais abraçaram, ainda que de forma enviesada, a sua sexualidade. Em suma, "enrustimento" e homofobia não andam lado a lado.

Deixemos, porém, essa questão para outro momento, pois quero me centrar nessas "estranhas figuras". Os gays homofóbicos. Você sabe qual é o discurso que eles têm?

Iguais e diferentes
Basicamente, é o mesmo dos não gays homofóbicos. Como em outras realidades de homofobia, há níveis e, no máximo, "atenua-se" alguma coisa. No entanto, o substrato é igual.

Entre os gays homofóbicos que são mais radicais, e geralmente e inicialmente direcionam a homofobia para si próprios, os argumentos vão de que a homossexualidade é antinatural e até os religiosos, como o de "não ser de Deus" à "teoria" de que é fruto da influência de algum demônio.

Esses vão acabar buscando "se curar" ou "se livrar" da homossexualidade – e aí vão lotar os consultórios de Marisa Lobo & Cia. ou programas da Exodus e entidades semelhantes de "ex-gays".

Esses gays mais radicais e homofóbicos vão também a cultos de libertação, a "aconselhamentos", a sessões de exorcismo e vão até se casar e ter filhos, tudo na busca para "sair" daquilo, ou "controlar" – e nem é raro que vejam o casamento como uma "tábua de salvação".

Muitas mulheres, especialmente as religiosas, apoiam essas ideias – e não ficam sabendo que, como o desejo é difícil de ser reprimido, fatalmente, mais tarde, buscarão homens, vivendo uma realidade dupla e infeliz.

Num segundo momento, eles se voltam contra os gays assumidos e felizes. Para eles, soa absurda essa opção: todos os gays deveriam, como eles, "buscar o bom caminho" e procurar se "converter" à heterossexualidade e à norma hétero de vivência afetivo-sexual, qualquer que seja ela.

Nessa fase, também não é incomum começarem a adotar outros discursos do opressor, como criticar a vida gay por ser "promíscua", "não gerar filhos", "ser cheia de álcool e drogas", culpar os gays por terem pegado HIV e disseminado a aids, etc. – tudo para justificar por que a homossexualidade é uma "vida desgraçada" a não ser seguida.

Moralismo
Existe também outro tipo de gay homofóbico bastante comum. Esse é o que até adota a sua sexualidade. Na minha experiência, acaba sendo um dos desdobramentos dos mais radicais, mas com outra solução. Se mantivermos essa tese, são aqueles que, depois de um tempo, não buscam mais o processo de cura, reversão – e admitem se relacionar com homens, mesmo que na vida dupla que mencionei mais atrás.

No entanto, não demora a vir a homofobia, de forma mais velada, num discurso conservador.

Terminantemente no armário, esses gays criticam os que dali saem e "expõem sua sexualidade". Dizem que "não é necessário se assumir" (porque, afinal, "héteros não se assumem"), que "contar pra família só trará desgosto", que beijar em público é "desrespeitar idosos", que fazer carinho na frente de crianças "pode influenciá-las e não deve ser feito", que exibir casais gays na tevê é "desrespeitar a família" e daí por diante.

Inclusive, apoiam os não gays homofóbicos e os gays do primeiro tipo com esse mesmo discurso. Chegam até mesmo a achar que "movimento gay é besteira" e que "casamento deve ser mesmo só entre homem e mulher".

Fatalmente, desse discurso deriva uma veia moralista. Aí, passam a criticar a parada gay porque é "orgia a céu aberto", gays mais femininos "porque não é porque é gay que é para ser mulher".

Detestam as drags, "que só trazem vergonha", e também as travestis "porque elas não se aceitam e querem ser o que não nasceram para ser". Também detestam "o meio gay" (seja lá que sentido deem à expressão), que, para eles, "só tem p*taria". Se topam um relacionamento, tem de ser um namoro tipicamente moralista, porque se consideram "diferentes" dos "outros gays, que só pensam em sexo".

Culpa da vítima
A rigor, o que há de comum, na verdade, é associar a homossexualidade a algo necessariamente negativo ou indesejável. Pode ser desde uma doença até um problema espiritual, de algo antinatural até motivo de vergonha (e "com razão") para os pais.

Para além disso, há uma crítica a qualquer comportamento gay que soe como uma liberação e exposição do que deve ser, irremediavelmente, vivido por baixo dos panos para não "desrespeitar" ninguém (leiam-se: héteros homofóbicos).

A coisa é tão séria que há até os que põem nas vítimas de agressão homofóbica a culpa por serem agredidas... Porque, "se fossem discretas" ou se "não transassem com qualquer um", "nada disso aconteceria".

Você já conheceu algum gay desses dois tipos? Se sim, acenda seu alerta. Ele é um gay que não conseguiu deixar a homofobia cultural e social de lado.

domingo, 12 de agosto de 2012

Seria Raí homofóbico?


Um assunto delicado, diria eu: “por demais!”, obviamente que os matizes envoltos nessa questão vão para muito além de uma primeira taxatividade:  é homofóbico!


Ainda, não se pode esperar parcimônia, no caso, de quem sofre a acusação, até mesmo, pelo direito de indignação à violação da privacidade.

Claro que o assunto rendeu, aliás, se alguém disser gay, sempre rende! Isso pelo fato da homossexualidade ser tabu e, em si mesma, ser carregada de preconceitos construídos ao longo da história, em particular, história do judaísmo e cristianismo.

Desta feita, dizer-se gay não é lá uma coisa muito simples... Só de pensar que foi em 1992 (histórico recentíssimo), que a Organização Mundial de Saúde deixou de considerar os gays como portadores de doenças ou distúrbios patológicos, nos ajuda vislumbrar o quão difícil e complexa são tais questões. Ainda, nesse mesmo sentido, toda construção social de mais de dois mil anos de história, em que os homossexuais são perseguidos pela Igreja  como corruptos, depravados, criminosos, sujos, pecadores, desonrados, blasfemos, vem fazendo, de tais conceitos, o parâmetro medidor e mediador da aceitabilidade e rejeições internas no corpo social.

Assim, por questões próprias também, digo: ninguém gosta de ser chamado de gay! E isso por quê?

Lembro-me, quando liguei para o João Marinho, em uma quinta-feira, provavelmente na hora do almoço (história recente essa, salvo engano, ano passado!), pois no clube que eu frequento, em uma discussão acalorada, fui chamado de gay e fiquei extremamente abafado e angustiado. Duas coisas a se considerar: 1) eu sou gay mesmo; 2) ser nomenclaturado por alguém, que usa do artifício social de rejeição, desse grupo societário, para expor o outro ao ridículo, ou invadir questões de foro íntimo e pessoal não é sensato, licito ou moral!

Voltemos, então, para o Raí:

Em uma bela manhã, Raí acorda e se depara com a notícia, via jornais: Bomba! Jogador Raí assume romance gay com apresentador da Globo, ou ainda, com amigos que ligam e o indagam: “e aí Raí, pegando o Zeca Camargo, hein, quem diria, por que você não falou nada para gente antes?

Deve ser bastante confortável tal questão, da noite para o dia você ter sua vida exposta de forma pejorativa, pois a homossexualidade, gostem ou não, no meio social, é símbolo de preconceitos e tabus fortíssimos; símbolo de rejeição e chacotas;  símbolo de ignomínia e perversão e, de repente, agora nem mais cobrar uma postura responsável e honesta, de quem fez o que fez, é algo viável ou possível, pois alguns militantes consideram que uma reação de indignação seja ela HOMOFOBIA!

Ao meu sentir, quem pensa assim, pensa precipitadamente... Quando uma prostituta é chamada de prostituta (por quem for), ela pode processar, inclusive, criminalmente por difamação a pessoa que lançou tal impropério. Perceba, mesmo ela sendo prostituta! Afinal, o termo prostituta usado com o intuito de desonrar alguém, ou atingir a intimidade sexual de alguém de forma vexatória é crime! Da mesma forma a questão de chamar alguém de gay, de homossexual, com o intuito de expor a condição intima de um cidadão de forma a desqualificá-lo diante da opinião pública.  

Não foi o Raí que inventou a rejeição social dos gays, nem foi ele que caçou confusão com os mesmos, pelo contrário, envolveram-no em uma situação surreal,  expuseram-no de forma acachapante em uma questão em que há dois mil anos ter seu nome associado a tal grupo traz constrangimentos mil, e só por isso, há milhões de gays pelo mundo vivendo no anonimato, na clandestinidade da orientação sexual, com medo de serem expostos e terem que enfrentar o preconceito, a rejeição, a humilhação de algo íntimo e PERSONALÍSSIMO, que não diz respeito a ninguém!

Portanto, NÃO, RAÍ NÃO É HOMOFÓBICO por processar ninguém, ele só faz uso de seu direito de não querer ter sua vida exposta, ou seu nome usado em questões em que ele não consente, independente de ser a noticia falsa ou verdadeira. É direito de Raí não querer esse tipo de assunto relacionado à sua pessoa, pelo direito pessoal, intransferível, irrevogável, íntimo, que só diz respeito a ele e a ninguém mais! 

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Religião versus ateísmo


Religião não define caráter. Ausência de religião também não

por João Marinho

Que me recorde, a discussão e o embate entre religião e ateísmo não resvala no caráter particular das pessoas.

Exemplos de religiosos que se comportam como pessoas de bem existem aos montes. De ateus intolerantes também - e vice-versa. Eu mesmo faço parte de uma família evangélica, e não a considero a pior do mundo (pelo contrário).

A disputa entre religião e ateísmo é uma disputa essencialmente ideológica e de escolha para o melhor caminho no que tange à defesa dos direitos humanos e da liberdade pessoal e científica.

Tem a ver com a discussão se é necessária a existência da fé religiosa, de uma ou mais entidades invisíveis, para definir o que é moral no ser humano - em vez de delegar à liberdade do espírito humano e a um pacto social a prerrogativa de definir essa moralidade.

Tem a ver com a discussão se é necessária a existência da fé religiosa, de uma ou mais entidades invisíveis, para guiar os preceitos e limites da ciência, em vez de delegar ao humanismo a prerrogativa dessa definição.

Tem a ver com a discussão se é a religião que deve ser usada como parâmetro para decidir sobre os direitos de minorias, grupos outsiders e temas polêmicos, ou se devemos contar com o embate ideológico-político baseado nas leis laicas para fazê-lo.

Finalmente, tem a ver com a discussão se é necessária a existência da fé religiosa, de uma ou mais entidades invisíveis, para ajudar o ser humano a lidar com suas dores e seus desafios, em vez de contar tão-somente com o conforto que a natureza, limitação e solidariedade humana podem oferecer.

É essa a discussão.

Os ateístas essencialmente defendem que a humanidade pode prescindir da religião - na qual não acreditam - e determinar por si própria, sem a anuência de um Deus, seres sobrenaturais ou leis ininteligíveis, o melhor caminho para traçar a moralidade, os direitos, os limites da liberdade pessoal e científica e do conforto frente às adversidades. Para os ateístas, malgrado eventuais contribuições da religião, esta, na maior parte das vezes, age como entrave e o avanço nesses tópicos seria mais rápido e efetivo se a humanidade dela prescindisse.

Já os religiosos defendem que a ideia de Deus ou outros seres é essencial, pois, não apenas por eles existirem, é deles que derivam as leis máximas do universo, a melhor forma de determinar os limites, a moralidade, a liberdade e o conforto - e que prescindir disso significa não apenas virar as costas para uma realidade objetiva, mas também ser punida a humanidade por fazê-lo. Nisso, criticam os ateus, porque sua forma de pensar seria o prelúdio dessa "queda humana", já que, diferente daqueles, não consideram que o ser humano possa ser de todo independente.

É esta a discussão, e, mesmo não sendo ateu, eu considero que a posição ateísta tem mais fundamento, no sentido de que a humanidade é capaz de caminhar por si própria sem a prerrogativa de livros sagrados ou seres a quem consagrar respeito especial. Também não acredito que a religião seja necessária para ensinar ao ser humano o que é bom, justo, moral e de valor - sendo que, quase sempre, ao fazer isso, a religião traz no bojo determinados preconceitos, sobretudo contra outras religiões, além de considerar o argumento do entrave como verdadeiro.

Assim, imagens como a acima, que não têm nada a ver com o embate maior entre as duas ideologias e comparam tipos diferentes de seres humanos com base em sua fé ou em sua ausência de fé (religiosa), são apenas uma tentativa débil de nublar a verdadeira discussão.

Afinal, se a religião não define o caráter, a ausência de religião também não. Fosse o mundo majoritariamente ateu, casos como o de Slobodan seriam condenados pela maioria. Fosse o mundo ateu, casos de religiosos humanitários ainda seriam louvados. A questão era saber se, sem religião, seria possível combater os males do primeiro grupo e promover as benesses do segundo. Os ateus acreditam que sim. Eu também.

Vale a pena não perder o foco e não nos deixarmos levar por essa propaganda teísta, cujo único propósito é jogar uma cortina de fumaça sobre o que realmente está sendo discutido alhures.

Sexual-socialismo: pegação, amizade, promiscuidade e companheirismo

"SEXUAL-SOCIALISMO"
Vivência gay em uma praça guarulhense, ou vamos falar de pegação?

por João Marinho

As pessoas que leram minha miniautobiografia (http://gospelgay.blogspot.com.br/2011/11/nao-e-facil-ser-gay-mas-eu-ainda.html) , que foi reproduzida em sites e blogs – como o Pará Diversidade, o Diversidade Barueri e o Fora do Armário – e conta como me descobri gay e por que, apesar de todas as dificuldades, ainda escolheria sê-lo, devem se lembrar de que, no começo dessa descoberta, eu pensava que gays eram pessoas que viviam apenas à noite, esgueirando-se por becos esfumaçados semelhantes aos existentes em Nova York.

Com o tempo, claro, conheci outros gays e vi que isso não tinha nada a ver. O excerto relata o seguinte: "tive a sorte de ir conhecendo outros gays e vi que, como eu, eram pessoas que trabalhavam, estudavam, tinham famílias... Muitos namoravam, e eram devotados àqueles que amavam. Viviam durante o dia. Nada de becos noturnos esfumaçados".

O que muitos talvez desconheçam seja onde eu conheci boa parte desses gays que tanto impactaram minha visão. A resposta é a Praça IV Centenário, em Guarulhos (SP), um antigo "point" de frequência gay destinado à "pegação" e "caçação" – mas não só, como vocês lerão a seguir.

Nomes de guerra
Na verdade, embora não tenha se iniciado lá, minha formação sexual se deu, em larga medida, convivendo com os gays da Praça IV Centenário – e eles não eram poucos. Certa vez, fizemos uma lista, de brincadeira, e foram arrolados 97 "habitués".

Quase todos tinham "nomes de guerra" femininos, pelos quais nos tratávamos. Em boa parte das vezes, eram versões femininas dos nomes reais. Assim, o Gilson era Gilsete; o Ademir, Mirete; o Carlos, Carlota; e o Claudinei, Claudineia.

Alguns, porém, recebiam nomes que não tinham nada a ver com isso. O Marcos, por exemplo, era Beatriz; o Ronaldo era a Rodomoça, já que trabalhava em uma empresa de ônibus; e o Ezequiel, que sempre passava na praça após suas aulas no colégio, era a Normalista – que, com o tempo, eu reduzi e passei a usar Norma, hehehe.

Outros tinham direito até a sobrenomes. O Paulo era Paulete Bolacheira – e, às vezes, o sobrenome vinha do nome de drag, como alguns eram, ou surgia para diferenciar de outros com nomes reais idênticos.

Havia, por exemplo, três "Joões". O mais baixinho era a Joaninha. O outro, Joana DeVille, uma vez que trabalhava no Hotel Deville. Eu era a Joana d'Arc.

Segundo a Gilsete, o motivo do sobrenome era a forma como eu então "caçava" parceiros. Escolhia a "vítima" de um grupo, mandava sinais como uma flecha, e o moço fatalmente vinha até mim. Nunca fui de tomar a iniciativa, ativamente falando.

O uso desses "nomes de guerra" era tão intenso que, por vezes, era difícil lembrar ou mesmo saber qual era o real. "Ah, ontem eu vi o Marcos". "Que Marcos?!". "A Beatriz". "Ah, sim" (risos).

Mesmo hoje, embora me lembre claramente dos rostos da Isabel, da Chiquitita (era o mais baixinho de nós!) e da Arrochadinha, não consigo me recordar dos nomes masculinos reais "delas".

Soma-se a isso uma dificuldade adicional: a de que os nomes masculinos reais nem sempre eram tão reais assim. O Pyter não nasceu Pyter. O Nando nunca se chamou Fernando, nem o Cléber era Cléber.

Pensando bem, talvez essa coisa dos nomes fosse uma forma de "trocar de persona". Não era segredo para ninguém que muitos não eram assumidos fora dali. Na praça, entre semelhantes, podíamos ser quem nossas famílias, às vezes religiosas, e colegas de trabalho não sabiam que éramos. O curioso é que lembro que alguns mostravam isso até fisicamente: o andar mudava tão logo cruzassem os limites da praça (risos).

Atendimento
Além dos habitués, havia os "clientes", numa nomenclatura minha, que tomo a liberdade de usar. Esses eram os homens que passavam por lá em busca de sexo, a pé ou por carro. Transeuntes, com quem geralmente ocorria a "pegação".

Embora houvesse "clientes" gays, penso que a maior parte deles não era. A sexualidade masculina, aprendi na praça, é mais flexível do que supõe a maioria.

Certamente, alguns eram bis e até adotavam essa identidade – mas outros tinham uma identidade hétero, uma vivência de acordo e passavam por lá apenas para "se aliviarem" com alguém que soubesse, por exemplo, fazer um bom sexo oral. Não era nada incomum que fossem casados (com mulheres). Seriam aqueles que hoje o Ministério da Saúde chama de HSHs (homens que fazem sexo com homens).

De verdade, porém, isso era o que menos importava. Era fácil perceber e saber que os habitués eram gays, mas os "clientes", pouco importava o que fossem, desde que garantissem bons momentos de prazer.

Havia alguns lugares propícios para o "atendimento", como falávamos à época. O mais comum era o banheiro do lado leste da praça, onde costumávamos nos concentrar – a IV Centenário é bem grande. À tarde, a melhor opção era o Cine Flórida, cinema pornô que ainda existe nas imediações.

Os que vinham de carro e os que os preferiam corriam para a "Rua das Camisinhas", paralela à Via Dutra e tomada quase que totalmente por um terreno baldio murado. Ali, as coisas aconteciam geralmente dentro dos carros mesmo, ou, para os mais corajosos, ao ar livre, perto de uma árvore cujas folhagens vinham até o chão. Atrás da distribuidora Liquigás, ou a mata próxima ao rio, do outro lado da Via Dutra, eram também locais populares.

Por fim, havia também os "noias", rapazes que, às vezes, eram usuários de drogas e realizavam pequenos furtos – mas que também protegiam os habitués gays até de outros ladrões, já que, é claro, a vida gay na praça acontecia à noite. Bastava ter com os noias uma convivência amistosa, do tipo dar alguns trocados de vez em quando, comprar um lanche, fazer um oral...

Aliás, justamente por isso, dificilmente eles mesmos nos roubavam, porque "éramos 'trutas'". Melhor coisa para um habitué novo era andar com os mais antigos. Os noias geralmente não os incomodavam porque fulano era amigo de sicrano, e sicrano "era 'truta'".

Sexual-socialismo
Para além disso, porém, o mais interessante é que nós, os habitués, vivíamos em uma espécie de "socialismo sexual". Entre nós, havia laços de coleguismo e amizade, mas isso não se refletia em exclusivismos sexuais.

Às vezes, nos "pegávamos" entre nós, mas, como já disse, geralmente "atendíamos" os "clientes". Alguns deles iam à praça com certa regularidade, e, mesmo sem fazer os laços de coleguismo/amizade mais fortes que caracterizavam os habitués, ficavam conhecidos, até por apelidos – não femininos. Era até possível que travassem amizade com um e com outro de nós e marcassem encontros fora dali.

No entanto, é preciso confessar que não era nada incomum que vários de nós já tivéssemos "atendido" o mesmo "cliente" – só que ninguém se importava com isso. Pelo contrário, nos ajudávamos. Se um amigo tivesse atendido o cliente X e, numa outra noite, ele quisesse meu corpo nu, o amigo me dava todas as dicas: do tamanho do membro ao que o "cliente" gostava e não gostava de fazer – e aí todo mundo se dava bem. Se houvesse perigo, isso também era dito.

Os namoros, lamento, não são um assunto sobre o qual eu possa tecer tantos comentários. Quando e se surgiam, surgiam entre os habitués, e, penso eu, tendiam a seguir um modelo mais "careta" – mas o mais comum mesmo era que ocorressem com não frequentadores. Na verdade, como eu já disse, muitos "clientes" eram casados. Também se sabia que havia habitués que namoravam, mas não se falava tanto disso. O status marital não era o que mais importava entre os dois grupos, afinal.

A verdade, porém, é que toda essa vivência não se resumia ao sexo. Para muitos de fora, provavelmente éramos apenas um "bando de viados" que se dedicavam "à linha banheirão" e não se respeitavam a si mesmos.

Certamente, era a opinião da Guarda Civil Metropolitana, que, para mostrar serviço, em vez de cuidar do patrimônio público, como devia, vivia "baixando" no banheiro depois de um tempo, tentando flagrar homens em pleno "ato obsceno".

Só que as coisas eram feitas com discrição. Não me recordo de nenhuma criança, por exemplo, que tenha visto qualquer coisa nos anos que passei ali, como gostam de arrotar os mais moralistas (até porque, o que uma criança estaria fazendo tarde da noite numa praça?) – e outra: os gays até mesmo cuidavam do banheiro, que a Prefeitura de Guarulhos negligenciava. Liderados pela Isabel, ou pela Gilsete, as mais velhas de nós, alguns traziam desinfetantes, rodos, vassouras e o limpavam em mutirões que ocorriam à luz do dia.

Para além dos laços de amizade e coleguismo a que me referi e que mesmo ultrapassavam os limites da praça, nós, habitués, também realizávamos "eventos" semelhantes a um piquenique de vez em quando: nós nos reuníamos, fazíamos uma vaquinha, comprávamos bebidas e sanduíches no mercado próximo e ficávamos lá, conversando, nos bancos da praça, ou em frente à "Rua das Camisinhas".

Havia, como se pode ver, uma verdadeira subcultura, "marginal", desconhecida das pessoas que frequentavam a mesma praça por motivos, entre aspas, "mais nobres". Incontáveis vezes, eu e muitos outros íamos à IV Centenário e ao entorno apenas para conversar mesmo, reencontrar os amigos, "dar pinta".

A "caçação" nem sempre acontecia, e, se acontecesse, não era a primeira intenção. Cansados ou sem vontade, às vezes, mesmo a dispensávamos. Aliás, alguns habitués que começaram a namorar chegaram a fazer isso. Foi, inclusive, meu caso.

Nesse ambiente, fiz meus primeiros amigos gays, alguns dos quais permanecem até hoje. Foram eles que me ensinaram muitos dos primeiros passos do sexo, falaram de camisinha (e, portanto, sexo seguro), "chuca" e otras cositas más não muito comuns em círculos, digamos, mais elevados. Alguns me aconselhavam – e também ajudei outros, com suas crises religiosas, familiares e até profissionalmente. Havia mesmo um quê de iniciação, em que os mais velhos e experientes transmitiam conhecimentos para os mais jovens.

Não era perfeito, claro, e, como toda aglomeração humana, até havia um ou outro desentendimento. Felizmente, porém, acontecimentos autolimitados.

Decadence avec elegance
Hoje, não existe mais a comunidade, que vivi intensamente lá pelos idos dos meus 18 anos e alguns bons anos depois. Alguns estabelecimentos foram erguidos no entorno da praça: hotéis, o Walmart, que comprou o terreno da "Rua das Camisinhas".

O banheiro foi transformado em depósito, a repressão da Guarda Metropolitana se intensificou e também houve uma deterioração da frequência, na minha opinião.

Com o tempo, recebemos muitos representantes de outras comunidades, como os a da ACM, o clube cheio de ruas desertas próximas no entorno do centro da cidade. Eles tinham outra cultura, de menos companheirismo. A região da ACM, que cheguei a conhecer, inclusive, era tida como perigosa.

Com eles, vieram novos comportamentos. Houve aumento dos furtos, dos "noias", que já não eram tão amigáveis. Alguns passaram a fazer ponto de programa – sem o devido profissionalismo –, dois até arranjaram "treta" com as travestis de outra comunidade, a do Posto Carreteiro.

Nisso, os mais antigos foram se afastando, os que vieram depois não lograram fazer os mesmos laços de amizade e coleguismo (brigavam muito, coisa de gay deslumbrado!), os "clientes" sumiram – e aí acabou.

Hoje, ainda há quem se encontre por aquelas paragens, mas há muito menos "caça" disponível e nem sombra do que antes fazíamos. Além disso, ficou bem mais perigoso.

No entanto, sempre me recordo com carinho daquela época, da qual guardo muitas boas lembranças. Meu psicólogo acredita que minha vivência na IV Centenário me marcou profundamente e está por trás das minhas ideias, digamos, mais liberais e libertárias sobre sexo e amor – e ao fato de que, mesmo com minha formação religiosa, o primeiro tenha uma cor lúdica e profana para mim.

Acho que ele tem razão, e é também por isso que me rebelo quando vejo gays com um discurso moralista e conservador, beirando o antissexo, fazendo coro àqueles que procuram sistematizar o prazer e controlá-lo – o deles e o de todos.

Entram aí daquele discurso dos que não reconhecem uma flexibilidade na sexualidade de muitos homens ("a partir do momento que fez isso, é aquilo") àqueles que se levantam contra sex clubs, "banheirões", "cinemões", "promiscuidade" e até paradas gays utilizando da mesma matriz moralista.

Isso sem falar nos que criticam de forma tão ferina qualquer vislumbre de efeminação ou "pinta" e que se atêm de forma excessiva ao físico e à juventude, como nas baladas gays tradicionais. Nem todos nós, ali, naquela praça, éramos lolitos com tanquinho, afinal.

São pessoas que, na minha opinião, não perceberam o potencial de viverem à margem de certos valores que não foram criados para nós – e que, justamente por isso, nos permite uma construção diferenciada e muito mais criativa.