sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Sexual-socialismo: pegação, amizade, promiscuidade e companheirismo

"SEXUAL-SOCIALISMO"
Vivência gay em uma praça guarulhense, ou vamos falar de pegação?

por João Marinho

As pessoas que leram minha miniautobiografia (http://gospelgay.blogspot.com.br/2011/11/nao-e-facil-ser-gay-mas-eu-ainda.html) , que foi reproduzida em sites e blogs – como o Pará Diversidade, o Diversidade Barueri e o Fora do Armário – e conta como me descobri gay e por que, apesar de todas as dificuldades, ainda escolheria sê-lo, devem se lembrar de que, no começo dessa descoberta, eu pensava que gays eram pessoas que viviam apenas à noite, esgueirando-se por becos esfumaçados semelhantes aos existentes em Nova York.

Com o tempo, claro, conheci outros gays e vi que isso não tinha nada a ver. O excerto relata o seguinte: "tive a sorte de ir conhecendo outros gays e vi que, como eu, eram pessoas que trabalhavam, estudavam, tinham famílias... Muitos namoravam, e eram devotados àqueles que amavam. Viviam durante o dia. Nada de becos noturnos esfumaçados".

O que muitos talvez desconheçam seja onde eu conheci boa parte desses gays que tanto impactaram minha visão. A resposta é a Praça IV Centenário, em Guarulhos (SP), um antigo "point" de frequência gay destinado à "pegação" e "caçação" – mas não só, como vocês lerão a seguir.

Nomes de guerra
Na verdade, embora não tenha se iniciado lá, minha formação sexual se deu, em larga medida, convivendo com os gays da Praça IV Centenário – e eles não eram poucos. Certa vez, fizemos uma lista, de brincadeira, e foram arrolados 97 "habitués".

Quase todos tinham "nomes de guerra" femininos, pelos quais nos tratávamos. Em boa parte das vezes, eram versões femininas dos nomes reais. Assim, o Gilson era Gilsete; o Ademir, Mirete; o Carlos, Carlota; e o Claudinei, Claudineia.

Alguns, porém, recebiam nomes que não tinham nada a ver com isso. O Marcos, por exemplo, era Beatriz; o Ronaldo era a Rodomoça, já que trabalhava em uma empresa de ônibus; e o Ezequiel, que sempre passava na praça após suas aulas no colégio, era a Normalista – que, com o tempo, eu reduzi e passei a usar Norma, hehehe.

Outros tinham direito até a sobrenomes. O Paulo era Paulete Bolacheira – e, às vezes, o sobrenome vinha do nome de drag, como alguns eram, ou surgia para diferenciar de outros com nomes reais idênticos.

Havia, por exemplo, três "Joões". O mais baixinho era a Joaninha. O outro, Joana DeVille, uma vez que trabalhava no Hotel Deville. Eu era a Joana d'Arc.

Segundo a Gilsete, o motivo do sobrenome era a forma como eu então "caçava" parceiros. Escolhia a "vítima" de um grupo, mandava sinais como uma flecha, e o moço fatalmente vinha até mim. Nunca fui de tomar a iniciativa, ativamente falando.

O uso desses "nomes de guerra" era tão intenso que, por vezes, era difícil lembrar ou mesmo saber qual era o real. "Ah, ontem eu vi o Marcos". "Que Marcos?!". "A Beatriz". "Ah, sim" (risos).

Mesmo hoje, embora me lembre claramente dos rostos da Isabel, da Chiquitita (era o mais baixinho de nós!) e da Arrochadinha, não consigo me recordar dos nomes masculinos reais "delas".

Soma-se a isso uma dificuldade adicional: a de que os nomes masculinos reais nem sempre eram tão reais assim. O Pyter não nasceu Pyter. O Nando nunca se chamou Fernando, nem o Cléber era Cléber.

Pensando bem, talvez essa coisa dos nomes fosse uma forma de "trocar de persona". Não era segredo para ninguém que muitos não eram assumidos fora dali. Na praça, entre semelhantes, podíamos ser quem nossas famílias, às vezes religiosas, e colegas de trabalho não sabiam que éramos. O curioso é que lembro que alguns mostravam isso até fisicamente: o andar mudava tão logo cruzassem os limites da praça (risos).

Atendimento
Além dos habitués, havia os "clientes", numa nomenclatura minha, que tomo a liberdade de usar. Esses eram os homens que passavam por lá em busca de sexo, a pé ou por carro. Transeuntes, com quem geralmente ocorria a "pegação".

Embora houvesse "clientes" gays, penso que a maior parte deles não era. A sexualidade masculina, aprendi na praça, é mais flexível do que supõe a maioria.

Certamente, alguns eram bis e até adotavam essa identidade – mas outros tinham uma identidade hétero, uma vivência de acordo e passavam por lá apenas para "se aliviarem" com alguém que soubesse, por exemplo, fazer um bom sexo oral. Não era nada incomum que fossem casados (com mulheres). Seriam aqueles que hoje o Ministério da Saúde chama de HSHs (homens que fazem sexo com homens).

De verdade, porém, isso era o que menos importava. Era fácil perceber e saber que os habitués eram gays, mas os "clientes", pouco importava o que fossem, desde que garantissem bons momentos de prazer.

Havia alguns lugares propícios para o "atendimento", como falávamos à época. O mais comum era o banheiro do lado leste da praça, onde costumávamos nos concentrar – a IV Centenário é bem grande. À tarde, a melhor opção era o Cine Flórida, cinema pornô que ainda existe nas imediações.

Os que vinham de carro e os que os preferiam corriam para a "Rua das Camisinhas", paralela à Via Dutra e tomada quase que totalmente por um terreno baldio murado. Ali, as coisas aconteciam geralmente dentro dos carros mesmo, ou, para os mais corajosos, ao ar livre, perto de uma árvore cujas folhagens vinham até o chão. Atrás da distribuidora Liquigás, ou a mata próxima ao rio, do outro lado da Via Dutra, eram também locais populares.

Por fim, havia também os "noias", rapazes que, às vezes, eram usuários de drogas e realizavam pequenos furtos – mas que também protegiam os habitués gays até de outros ladrões, já que, é claro, a vida gay na praça acontecia à noite. Bastava ter com os noias uma convivência amistosa, do tipo dar alguns trocados de vez em quando, comprar um lanche, fazer um oral...

Aliás, justamente por isso, dificilmente eles mesmos nos roubavam, porque "éramos 'trutas'". Melhor coisa para um habitué novo era andar com os mais antigos. Os noias geralmente não os incomodavam porque fulano era amigo de sicrano, e sicrano "era 'truta'".

Sexual-socialismo
Para além disso, porém, o mais interessante é que nós, os habitués, vivíamos em uma espécie de "socialismo sexual". Entre nós, havia laços de coleguismo e amizade, mas isso não se refletia em exclusivismos sexuais.

Às vezes, nos "pegávamos" entre nós, mas, como já disse, geralmente "atendíamos" os "clientes". Alguns deles iam à praça com certa regularidade, e, mesmo sem fazer os laços de coleguismo/amizade mais fortes que caracterizavam os habitués, ficavam conhecidos, até por apelidos – não femininos. Era até possível que travassem amizade com um e com outro de nós e marcassem encontros fora dali.

No entanto, é preciso confessar que não era nada incomum que vários de nós já tivéssemos "atendido" o mesmo "cliente" – só que ninguém se importava com isso. Pelo contrário, nos ajudávamos. Se um amigo tivesse atendido o cliente X e, numa outra noite, ele quisesse meu corpo nu, o amigo me dava todas as dicas: do tamanho do membro ao que o "cliente" gostava e não gostava de fazer – e aí todo mundo se dava bem. Se houvesse perigo, isso também era dito.

Os namoros, lamento, não são um assunto sobre o qual eu possa tecer tantos comentários. Quando e se surgiam, surgiam entre os habitués, e, penso eu, tendiam a seguir um modelo mais "careta" – mas o mais comum mesmo era que ocorressem com não frequentadores. Na verdade, como eu já disse, muitos "clientes" eram casados. Também se sabia que havia habitués que namoravam, mas não se falava tanto disso. O status marital não era o que mais importava entre os dois grupos, afinal.

A verdade, porém, é que toda essa vivência não se resumia ao sexo. Para muitos de fora, provavelmente éramos apenas um "bando de viados" que se dedicavam "à linha banheirão" e não se respeitavam a si mesmos.

Certamente, era a opinião da Guarda Civil Metropolitana, que, para mostrar serviço, em vez de cuidar do patrimônio público, como devia, vivia "baixando" no banheiro depois de um tempo, tentando flagrar homens em pleno "ato obsceno".

Só que as coisas eram feitas com discrição. Não me recordo de nenhuma criança, por exemplo, que tenha visto qualquer coisa nos anos que passei ali, como gostam de arrotar os mais moralistas (até porque, o que uma criança estaria fazendo tarde da noite numa praça?) – e outra: os gays até mesmo cuidavam do banheiro, que a Prefeitura de Guarulhos negligenciava. Liderados pela Isabel, ou pela Gilsete, as mais velhas de nós, alguns traziam desinfetantes, rodos, vassouras e o limpavam em mutirões que ocorriam à luz do dia.

Para além dos laços de amizade e coleguismo a que me referi e que mesmo ultrapassavam os limites da praça, nós, habitués, também realizávamos "eventos" semelhantes a um piquenique de vez em quando: nós nos reuníamos, fazíamos uma vaquinha, comprávamos bebidas e sanduíches no mercado próximo e ficávamos lá, conversando, nos bancos da praça, ou em frente à "Rua das Camisinhas".

Havia, como se pode ver, uma verdadeira subcultura, "marginal", desconhecida das pessoas que frequentavam a mesma praça por motivos, entre aspas, "mais nobres". Incontáveis vezes, eu e muitos outros íamos à IV Centenário e ao entorno apenas para conversar mesmo, reencontrar os amigos, "dar pinta".

A "caçação" nem sempre acontecia, e, se acontecesse, não era a primeira intenção. Cansados ou sem vontade, às vezes, mesmo a dispensávamos. Aliás, alguns habitués que começaram a namorar chegaram a fazer isso. Foi, inclusive, meu caso.

Nesse ambiente, fiz meus primeiros amigos gays, alguns dos quais permanecem até hoje. Foram eles que me ensinaram muitos dos primeiros passos do sexo, falaram de camisinha (e, portanto, sexo seguro), "chuca" e otras cositas más não muito comuns em círculos, digamos, mais elevados. Alguns me aconselhavam – e também ajudei outros, com suas crises religiosas, familiares e até profissionalmente. Havia mesmo um quê de iniciação, em que os mais velhos e experientes transmitiam conhecimentos para os mais jovens.

Não era perfeito, claro, e, como toda aglomeração humana, até havia um ou outro desentendimento. Felizmente, porém, acontecimentos autolimitados.

Decadence avec elegance
Hoje, não existe mais a comunidade, que vivi intensamente lá pelos idos dos meus 18 anos e alguns bons anos depois. Alguns estabelecimentos foram erguidos no entorno da praça: hotéis, o Walmart, que comprou o terreno da "Rua das Camisinhas".

O banheiro foi transformado em depósito, a repressão da Guarda Metropolitana se intensificou e também houve uma deterioração da frequência, na minha opinião.

Com o tempo, recebemos muitos representantes de outras comunidades, como os a da ACM, o clube cheio de ruas desertas próximas no entorno do centro da cidade. Eles tinham outra cultura, de menos companheirismo. A região da ACM, que cheguei a conhecer, inclusive, era tida como perigosa.

Com eles, vieram novos comportamentos. Houve aumento dos furtos, dos "noias", que já não eram tão amigáveis. Alguns passaram a fazer ponto de programa – sem o devido profissionalismo –, dois até arranjaram "treta" com as travestis de outra comunidade, a do Posto Carreteiro.

Nisso, os mais antigos foram se afastando, os que vieram depois não lograram fazer os mesmos laços de amizade e coleguismo (brigavam muito, coisa de gay deslumbrado!), os "clientes" sumiram – e aí acabou.

Hoje, ainda há quem se encontre por aquelas paragens, mas há muito menos "caça" disponível e nem sombra do que antes fazíamos. Além disso, ficou bem mais perigoso.

No entanto, sempre me recordo com carinho daquela época, da qual guardo muitas boas lembranças. Meu psicólogo acredita que minha vivência na IV Centenário me marcou profundamente e está por trás das minhas ideias, digamos, mais liberais e libertárias sobre sexo e amor – e ao fato de que, mesmo com minha formação religiosa, o primeiro tenha uma cor lúdica e profana para mim.

Acho que ele tem razão, e é também por isso que me rebelo quando vejo gays com um discurso moralista e conservador, beirando o antissexo, fazendo coro àqueles que procuram sistematizar o prazer e controlá-lo – o deles e o de todos.

Entram aí daquele discurso dos que não reconhecem uma flexibilidade na sexualidade de muitos homens ("a partir do momento que fez isso, é aquilo") àqueles que se levantam contra sex clubs, "banheirões", "cinemões", "promiscuidade" e até paradas gays utilizando da mesma matriz moralista.

Isso sem falar nos que criticam de forma tão ferina qualquer vislumbre de efeminação ou "pinta" e que se atêm de forma excessiva ao físico e à juventude, como nas baladas gays tradicionais. Nem todos nós, ali, naquela praça, éramos lolitos com tanquinho, afinal.

São pessoas que, na minha opinião, não perceberam o potencial de viverem à margem de certos valores que não foram criados para nós – e que, justamente por isso, nos permite uma construção diferenciada e muito mais criativa.

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