"SEXUAL-SOCIALISMO"
Vivência gay em uma praça guarulhense, ou vamos falar
de pegação?
por João Marinho
As
pessoas que leram minha miniautobiografia (http://gospelgay.blogspot.com.br/2011/11/nao-e-facil-ser-gay-mas-eu-ainda.html) ,
que foi reproduzida em sites e blogs – como o Pará Diversidade, o Diversidade
Barueri e o Fora do Armário – e
conta como me descobri gay e por que, apesar de todas as dificuldades, ainda
escolheria sê-lo, devem se lembrar de que, no começo dessa descoberta, eu
pensava que gays eram pessoas que viviam apenas à noite, esgueirando-se por
becos esfumaçados semelhantes aos existentes em Nova York.
Com o
tempo, claro, conheci outros gays e vi que isso não tinha nada a ver. O excerto
relata o seguinte: "tive a
sorte de ir conhecendo outros gays e vi que, como eu, eram pessoas que
trabalhavam, estudavam, tinham famílias... Muitos namoravam, e eram devotados
àqueles que amavam. Viviam durante o dia. Nada de becos noturnos
esfumaçados".
O que muitos talvez
desconheçam seja onde eu conheci boa
parte desses gays que tanto impactaram minha visão. A resposta é a Praça IV Centenário, em Guarulhos (SP),
um antigo "point" de
frequência gay destinado à "pegação" e "caçação" – mas não
só, como vocês lerão a seguir.
Nomes de guerra
Na
verdade, embora não tenha se iniciado lá, minha formação sexual se deu, em
larga medida, convivendo com os gays da Praça IV Centenário – e eles não eram
poucos. Certa vez, fizemos uma
lista, de brincadeira, e foram arrolados 97 "habitués".
Quase todos tinham
"nomes de guerra" femininos, pelos quais nos tratávamos. Em boa parte
das vezes, eram versões femininas dos nomes reais. Assim, o Gilson era Gilsete;
o Ademir, Mirete; o Carlos, Carlota; e o Claudinei, Claudineia.
Alguns, porém, recebiam nomes
que não tinham nada a ver com isso. O Marcos, por exemplo, era Beatriz; o
Ronaldo era a Rodomoça, já que trabalhava em uma empresa de ônibus; e o
Ezequiel, que sempre passava na praça após suas aulas no colégio, era a
Normalista – que, com o tempo, eu reduzi e passei a usar Norma, hehehe.
Outros tinham direito até a sobrenomes. O Paulo era Paulete Bolacheira – e, às vezes, o sobrenome vinha do nome de drag, como alguns eram, ou surgia para diferenciar de outros com nomes reais idênticos.
Outros tinham direito até a sobrenomes. O Paulo era Paulete Bolacheira – e, às vezes, o sobrenome vinha do nome de drag, como alguns eram, ou surgia para diferenciar de outros com nomes reais idênticos.
Havia, por exemplo, três
"Joões". O mais baixinho era a Joaninha. O outro, Joana DeVille, uma
vez que trabalhava no Hotel Deville. Eu era a Joana d'Arc.
Segundo a Gilsete, o motivo
do sobrenome era a forma como eu então "caçava" parceiros. Escolhia a
"vítima" de um grupo, mandava sinais como uma flecha, e o moço
fatalmente vinha até mim. Nunca fui de tomar a iniciativa, ativamente falando.
O uso desses "nomes de guerra" era tão intenso que, por vezes, era difícil lembrar ou mesmo saber qual era o real. "Ah, ontem eu vi o Marcos". "Que Marcos?!". "A Beatriz". "Ah, sim" (risos).
O uso desses "nomes de guerra" era tão intenso que, por vezes, era difícil lembrar ou mesmo saber qual era o real. "Ah, ontem eu vi o Marcos". "Que Marcos?!". "A Beatriz". "Ah, sim" (risos).
Mesmo hoje, embora me lembre
claramente dos rostos da Isabel, da Chiquitita (era o mais baixinho de nós!) e
da Arrochadinha, não consigo me recordar dos nomes masculinos reais
"delas".
Soma-se a isso uma
dificuldade adicional: a de que os nomes masculinos reais nem sempre eram tão
reais assim. O Pyter não nasceu Pyter. O Nando nunca se chamou Fernando, nem o
Cléber era Cléber.
Pensando bem, talvez essa
coisa dos nomes fosse uma forma de "trocar de persona". Não era segredo para ninguém que muitos não eram
assumidos fora dali. Na praça, entre semelhantes, podíamos ser quem nossas
famílias, às vezes religiosas, e colegas de trabalho não sabiam que éramos. O
curioso é que lembro que alguns mostravam isso até fisicamente: o andar mudava
tão logo cruzassem os limites da praça (risos).
Atendimento
Além dos habitués, havia os "clientes",
numa nomenclatura minha, que tomo a liberdade de usar. Esses eram os homens que
passavam por lá em busca de sexo, a pé ou por carro. Transeuntes, com quem geralmente
ocorria a "pegação".
Embora houvesse
"clientes" gays, penso que a maior parte deles não era. A sexualidade
masculina, aprendi na praça, é mais flexível do que supõe a maioria.
Certamente, alguns eram bis e
até adotavam essa identidade – mas outros tinham uma identidade hétero, uma
vivência de acordo e passavam por lá apenas para "se aliviarem" com
alguém que soubesse, por exemplo, fazer um bom sexo oral. Não era nada incomum
que fossem casados (com mulheres). Seriam aqueles que hoje o Ministério da
Saúde chama de HSHs (homens que fazem sexo com homens).
De verdade, porém, isso era o
que menos importava. Era fácil perceber e saber que os habitués eram gays, mas os "clientes", pouco importava o
que fossem, desde que garantissem bons momentos de prazer.
Havia alguns lugares
propícios para o "atendimento", como falávamos à época. O mais comum
era o banheiro do lado leste da praça, onde costumávamos nos concentrar – a IV
Centenário é bem grande. À tarde, a melhor opção era o Cine Flórida, cinema
pornô que ainda existe nas imediações.
Os que vinham de carro e os
que os preferiam corriam para a "Rua das Camisinhas", paralela à Via
Dutra e tomada quase que totalmente por um terreno baldio murado. Ali, as
coisas aconteciam geralmente dentro dos carros mesmo, ou, para os mais
corajosos, ao ar livre, perto de uma árvore cujas folhagens vinham até o chão.
Atrás da distribuidora Liquigás, ou a mata próxima ao rio, do outro lado da Via
Dutra, eram também locais populares.
Por fim, havia também os
"noias", rapazes que, às vezes, eram usuários de drogas e realizavam
pequenos furtos – mas que também protegiam os habitués gays até de outros ladrões, já que, é claro, a vida gay na
praça acontecia à noite. Bastava ter com os noias uma convivência amistosa, do
tipo dar alguns trocados de vez em quando, comprar um lanche, fazer um oral...
Aliás, justamente por isso,
dificilmente eles mesmos nos roubavam, porque "éramos 'trutas'".
Melhor coisa para um habitué novo era andar com os mais antigos. Os noias
geralmente não os incomodavam porque fulano era amigo de sicrano, e sicrano
"era 'truta'".
Sexual-socialismo
Sexual-socialismo
Para além disso, porém, o
mais interessante é que nós, os habitués,
vivíamos em uma espécie de "socialismo
sexual". Entre nós, havia laços de coleguismo e amizade, mas isso não
se refletia em exclusivismos sexuais.
Às vezes, nos "pegávamos"
entre nós, mas, como já disse, geralmente "atendíamos" os
"clientes". Alguns deles iam à praça com certa regularidade, e, mesmo
sem fazer os laços de coleguismo/amizade mais fortes que caracterizavam os habitués, ficavam conhecidos, até por
apelidos – não femininos. Era até possível que travassem amizade com um e com
outro de nós e marcassem encontros fora dali.
No entanto, é preciso
confessar que não era nada incomum que vários de nós já tivéssemos
"atendido" o mesmo "cliente" – só que ninguém se importava
com isso. Pelo contrário, nos ajudávamos. Se um amigo tivesse atendido o cliente
X e, numa outra noite, ele quisesse meu corpo nu, o amigo me dava todas as
dicas: do tamanho do membro ao que o "cliente" gostava e não gostava
de fazer – e aí todo mundo se dava bem. Se houvesse perigo, isso também era
dito.
Os namoros, lamento, não são
um assunto sobre o qual eu possa tecer tantos comentários. Quando e se surgiam,
surgiam entre os habitués, e, penso
eu, tendiam a seguir um modelo mais "careta" – mas o mais comum mesmo
era que ocorressem com não frequentadores. Na verdade, como eu já disse, muitos
"clientes" eram casados. Também se sabia que havia habitués que namoravam, mas não se
falava tanto disso. O status marital
não era o que mais importava entre os dois grupos, afinal.
A verdade, porém, é que toda
essa vivência não se resumia ao sexo. Para muitos de fora, provavelmente éramos
apenas um "bando de viados" que se dedicavam "à linha
banheirão" e não se respeitavam a si mesmos.
Certamente, era a opinião da
Guarda Civil Metropolitana, que, para mostrar serviço, em vez de cuidar do
patrimônio público, como devia, vivia "baixando" no banheiro depois
de um tempo, tentando flagrar homens em pleno "ato obsceno".
Só que as coisas eram feitas
com discrição. Não me recordo de nenhuma criança, por exemplo, que tenha visto
qualquer coisa nos anos que passei ali, como gostam de arrotar os mais
moralistas (até porque, o que uma criança estaria fazendo tarde da noite numa
praça?) – e outra: os gays até mesmo cuidavam do banheiro, que a Prefeitura de
Guarulhos negligenciava. Liderados pela Isabel, ou pela Gilsete, as mais velhas
de nós, alguns traziam desinfetantes, rodos, vassouras e o limpavam em mutirões
que ocorriam à luz do dia.
Para além dos laços de
amizade e coleguismo a que me referi e que mesmo ultrapassavam os limites da
praça, nós, habitués, também realizávamos
"eventos" semelhantes a um piquenique de vez em quando: nós nos
reuníamos, fazíamos uma vaquinha, comprávamos bebidas e sanduíches no mercado
próximo e ficávamos lá, conversando, nos bancos da praça, ou em frente à
"Rua das Camisinhas".
Havia, como se pode ver, uma
verdadeira subcultura, "marginal", desconhecida das pessoas que
frequentavam a mesma praça por motivos, entre aspas, "mais nobres". Incontáveis
vezes, eu e muitos outros íamos à IV Centenário e ao entorno apenas para
conversar mesmo, reencontrar os amigos, "dar pinta".
A "caçação" nem
sempre acontecia, e, se acontecesse, não era a primeira intenção. Cansados ou
sem vontade, às vezes, mesmo a dispensávamos. Aliás, alguns habitués que começaram a namorar chegaram
a fazer isso. Foi, inclusive, meu caso.
Nesse ambiente, fiz meus
primeiros amigos gays, alguns dos quais permanecem até hoje. Foram eles que me
ensinaram muitos dos primeiros passos do sexo, falaram de camisinha (e,
portanto, sexo seguro), "chuca" e otras
cositas más não muito comuns em círculos, digamos, mais elevados. Alguns me
aconselhavam – e também ajudei outros, com suas crises religiosas, familiares e
até profissionalmente. Havia mesmo um quê de iniciação, em que os mais velhos e
experientes transmitiam conhecimentos para os mais jovens.
Não era perfeito, claro, e,
como toda aglomeração humana, até havia um ou outro desentendimento.
Felizmente, porém, acontecimentos autolimitados.
Decadence avec elegance
Hoje,
não existe mais a comunidade, que vivi intensamente lá pelos idos dos meus 18
anos e alguns bons anos depois. Alguns estabelecimentos foram erguidos no
entorno da praça: hotéis, o Walmart, que comprou o terreno da "Rua das
Camisinhas".
O
banheiro foi transformado em depósito, a repressão da Guarda Metropolitana se
intensificou e também houve uma deterioração da frequência, na minha opinião.
Com o tempo, recebemos muitos
representantes de outras comunidades, como os a da ACM, o clube cheio de ruas
desertas próximas no entorno do centro da cidade. Eles tinham outra cultura, de
menos companheirismo. A região da ACM, que cheguei a conhecer, inclusive, era
tida como perigosa.
Com eles, vieram novos
comportamentos. Houve aumento dos furtos, dos "noias", que já não
eram tão amigáveis. Alguns passaram a fazer ponto de programa – sem o devido
profissionalismo –, dois até arranjaram "treta" com as travestis de
outra comunidade, a do Posto Carreteiro.
Nisso, os mais antigos foram
se afastando, os que vieram depois não lograram fazer os mesmos laços de
amizade e coleguismo (brigavam muito, coisa de gay deslumbrado!), os
"clientes" sumiram – e aí acabou.
Hoje, ainda há quem se
encontre por aquelas paragens, mas há muito menos "caça" disponível e
nem sombra do que antes fazíamos. Além disso, ficou bem mais perigoso.
No entanto, sempre me recordo
com carinho daquela época, da qual guardo muitas boas lembranças. Meu psicólogo
acredita que minha vivência na IV Centenário me marcou profundamente e está por
trás das minhas ideias, digamos, mais liberais e libertárias sobre sexo e amor –
e ao fato de que, mesmo com minha formação religiosa, o primeiro tenha uma cor
lúdica e profana para mim.
Acho que ele tem razão, e é
também por isso que me rebelo quando vejo gays com um discurso moralista e
conservador, beirando o antissexo, fazendo coro àqueles que procuram
sistematizar o prazer e controlá-lo – o deles e o de todos.
Entram aí daquele discurso dos
que não reconhecem uma flexibilidade na sexualidade de muitos homens ("a
partir do momento que fez isso, é aquilo") àqueles que se levantam contra sex clubs, "banheirões",
"cinemões", "promiscuidade" e até paradas gays utilizando
da mesma matriz moralista.
Isso sem falar nos que
criticam de forma tão ferina qualquer vislumbre de efeminação ou
"pinta" e que se atêm de forma excessiva ao físico e à juventude,
como nas baladas gays tradicionais. Nem todos nós, ali, naquela praça, éramos
lolitos com tanquinho, afinal.
São pessoas que, na minha
opinião, não perceberam o potencial de viverem à margem de certos valores que
não foram criados para nós – e que, justamente por isso, nos permite uma
construção diferenciada e muito mais criativa.
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