Velas
por João Marinho
VELAS
Embora eu acredite que muitos de vocês não saibam, nunca foi segredo para ninguém que eu sou um “filho da igreja”, no sentido mais próprio do termo. Fui literalmente criado na Igreja Batista, denominação de que nunca saí até deixar o cristianismo – ainda que tenha transitado em dois segmentos internos, o da Convenção e o da Batista Bíblica –, e cedo me converti, aos 12 anos de idade; e me batizei aos 14.
Com isso, me irmanei ao restante da minha família nuclear: minha mãe e minhas duas irmãs, também evangélicas... Ou protestantes, termo que considero mais simpático para as denominações históricas.
Minha família, porém, sempre teve a singular diferença do meu pai, católico. “Sui generis”, é verdade... Não praticante, daqueles que reclamam do papa, criticam o cristianismo e a Bíblia, veem as diferentes igrejas de uma perspectiva não raro negativa e dificilmente entram em uma, a não ser em casamentos e batismos... E uma ou outra vez para ver eu e minhas irmãs cantando ou interpretando uma peça de temática bíblica, ou para passar o Natal e o Ano Novo em nossa companhia.
Acho que, no fundo, meu pai só se diz católico por tradição. Quando éramos bebês, em acordo com a minha mãe, que já era evangélica, fez questão de que fôssemos batizados por um padre – mas nunca expressou qualquer desejo de primeira comunhão ou de crisma. Devoto de algum santo? Não que eu saiba. Reza às vezes, mas não o Pai Nosso ou a Ave Maria: é mais como a oração dos evangélicos. Benze-se antes de sair de casa... E para por aí.
No entanto, ele sempre manteve outra tradição igualmente singular. Todo dia 2 de novembro, dirige-se a um cemitério e acende velas. Primeiro, para seus pais, meus avós, que há muitos anos se foram. Depois, para os amigos que ele tinha e que, idosos como ele, partiram antes – e isso sempre me chamou a atenção.
Quando eu estava na Igreja Batista, nutria, como o restante da família, o sentimento de ver meu pai convertido à religião evangélica. Isso nunca aconteceu, e eu tendia a considerar as críticas dele coisas de “incrédulo”, mas o tempo traz a experiência... E, tão surpreendente quanto foi minha desconversão para o restante da família, foi para mim o fato de que eu passei a entender o modo de ver de meu pai e as críticas que ele tecia. Muitas vezes, até concordamos.
Temos eu e ele uma relação muito boa, mesmo com a dificuldade que ele tem, dada sua criação nordestina e machista, com a minha homossexualidade. Há confiança, carinho e somos, inclusive, confidentes. Não sei se por eu ser gay e, por isso, supostamente já ter a mente mais aberta (embora eu tenha mesmo, hehehe), mas tenho a impressão de que meu pai entende que pode me contar “qualquer coisa”. Há certas confissões que me deixaram de cabelo em pé, rs – mas eu gostei delas, porque me fizeram enxergar uma realidade: nossos pais não são perfeitos, são humanos, erram, têm seus medos, segredos... E já pisaram muito no tomate quando jovens.
Essa não tão súbita maior proximidade e entendimento me fez prestar ainda mais atenção ao ritual do dia 2, a ponto de, certa vez, ali pelo segundo ou terceiro ano de faculdade, eu perguntar a minha amiga Thais Iervolino por que os católicos acendiam velas, iam a cemitérios e rezavam para as pessoas que se foram. Na minha igreja, dizia-se que evangélico mesmo só ia ao cemitério duas vezes a cada morte: no sepultamento do ente querido e na hora em que ele próprio viesse a morrer. Ela me explicou que era para ajudar-lhes a encontrar o caminho, ajudar-lhes a superar os rigores do purgatório e também para nos lembrarmos deles.
Purgatório é uma tese estranha a ouvidos evangélicos. As igrejas protestantes acreditam que há apenas dois destinos finais: paraíso ou inferno, definidos pela crença em Jesus Cristo. Defendi isso por muitos anos. Verdade seja dita, porém, a tese de um terceiro lugar me soava mais simpática. Especialmente no final do meu processo de desconversão, sempre achei a lei divina interpretada pelos evangélicos radical demais. Definitiva. Sem chance de remissão.
Thais nunca soube, mas aquela conversa me impactou – e me mudou. Então, um dia, para surpresa da minha família, eu anunciei que iria com meu pai ao cemitério no dia 2 de novembro. Ele ficou muito feliz. Foi um dia mágico, na verdade, porque me senti compartilhando com meu pai algo que lhe era muito íntimo, até dolorido, e que ele vivia sozinho.
“Sui generis” como ele é, não acredito que meu pai creia que as velas que acende de fato ajudarão meus avós ou seus amigos em qualquer atividade no outro plano. Nem mesmo sei se ele tem certeza de onde eles estão na suposta outra vida.
Embora nunca tenhamos conversado sobre essa parte do ritual, percebi que, na verdade, para ele, ir ao cemitério e acender suas velas é mais como um memorial. Uma forma de homenagear aquelas pessoas queridas que não estão mais entre nós, externar a falta que elas fazem, refletir sobre o curso da vida e lembrar os momentos que com elas passamos e que, muitas vezes, na correria do dia a dia, deixamos desbotar. Rezar por elas também, é claro – e, de um ponto de vista, compartilhar esse sentimento de respeito, em silêncio, com outros que estão fazendo a mesma coisa e que conhecem a mesma dor. Sinceramente, achei isso muito bonito e, pelo menos, foi a forma pela qual passei a entender e sentir o Dia de Finados, já que a ideia de céu, inferno e purgatório faz pouco sentido para um desconvertido.
Muitos amigos não entendem por que, não sendo eu mais um “cristão”, guardo essa data. Estranham ainda que eu tenha iniciado a tradição depois de desconvertido.
São essas as razões.
Já perdi algumas pessoas, algumas muito jovens e quando eu era muito jovem. Não sei se o fato de eu elevar meu pensamento a elas as ajuda, nem mesmo se existe outro plano, nem se elas estão lá – mas faz bem. Honrar a própria história e lembrar-se de quem merece é algo que comove. Por isso, amanhã, estarei novamente lá, acendendo minhas velas – e vendo-as queimar com minhas lembranças.
Embora eu acredite que muitos de vocês não saibam, nunca foi segredo para ninguém que eu sou um “filho da igreja”, no sentido mais próprio do termo. Fui literalmente criado na Igreja Batista, denominação de que nunca saí até deixar o cristianismo – ainda que tenha transitado em dois segmentos internos, o da Convenção e o da Batista Bíblica –, e cedo me converti, aos 12 anos de idade; e me batizei aos 14.
Com isso, me irmanei ao restante da minha família nuclear: minha mãe e minhas duas irmãs, também evangélicas... Ou protestantes, termo que considero mais simpático para as denominações históricas.
Minha família, porém, sempre teve a singular diferença do meu pai, católico. “Sui generis”, é verdade... Não praticante, daqueles que reclamam do papa, criticam o cristianismo e a Bíblia, veem as diferentes igrejas de uma perspectiva não raro negativa e dificilmente entram em uma, a não ser em casamentos e batismos... E uma ou outra vez para ver eu e minhas irmãs cantando ou interpretando uma peça de temática bíblica, ou para passar o Natal e o Ano Novo em nossa companhia.
Acho que, no fundo, meu pai só se diz católico por tradição. Quando éramos bebês, em acordo com a minha mãe, que já era evangélica, fez questão de que fôssemos batizados por um padre – mas nunca expressou qualquer desejo de primeira comunhão ou de crisma. Devoto de algum santo? Não que eu saiba. Reza às vezes, mas não o Pai Nosso ou a Ave Maria: é mais como a oração dos evangélicos. Benze-se antes de sair de casa... E para por aí.
No entanto, ele sempre manteve outra tradição igualmente singular. Todo dia 2 de novembro, dirige-se a um cemitério e acende velas. Primeiro, para seus pais, meus avós, que há muitos anos se foram. Depois, para os amigos que ele tinha e que, idosos como ele, partiram antes – e isso sempre me chamou a atenção.
Quando eu estava na Igreja Batista, nutria, como o restante da família, o sentimento de ver meu pai convertido à religião evangélica. Isso nunca aconteceu, e eu tendia a considerar as críticas dele coisas de “incrédulo”, mas o tempo traz a experiência... E, tão surpreendente quanto foi minha desconversão para o restante da família, foi para mim o fato de que eu passei a entender o modo de ver de meu pai e as críticas que ele tecia. Muitas vezes, até concordamos.
Temos eu e ele uma relação muito boa, mesmo com a dificuldade que ele tem, dada sua criação nordestina e machista, com a minha homossexualidade. Há confiança, carinho e somos, inclusive, confidentes. Não sei se por eu ser gay e, por isso, supostamente já ter a mente mais aberta (embora eu tenha mesmo, hehehe), mas tenho a impressão de que meu pai entende que pode me contar “qualquer coisa”. Há certas confissões que me deixaram de cabelo em pé, rs – mas eu gostei delas, porque me fizeram enxergar uma realidade: nossos pais não são perfeitos, são humanos, erram, têm seus medos, segredos... E já pisaram muito no tomate quando jovens.
Essa não tão súbita maior proximidade e entendimento me fez prestar ainda mais atenção ao ritual do dia 2, a ponto de, certa vez, ali pelo segundo ou terceiro ano de faculdade, eu perguntar a minha amiga Thais Iervolino por que os católicos acendiam velas, iam a cemitérios e rezavam para as pessoas que se foram. Na minha igreja, dizia-se que evangélico mesmo só ia ao cemitério duas vezes a cada morte: no sepultamento do ente querido e na hora em que ele próprio viesse a morrer. Ela me explicou que era para ajudar-lhes a encontrar o caminho, ajudar-lhes a superar os rigores do purgatório e também para nos lembrarmos deles.
Purgatório é uma tese estranha a ouvidos evangélicos. As igrejas protestantes acreditam que há apenas dois destinos finais: paraíso ou inferno, definidos pela crença em Jesus Cristo. Defendi isso por muitos anos. Verdade seja dita, porém, a tese de um terceiro lugar me soava mais simpática. Especialmente no final do meu processo de desconversão, sempre achei a lei divina interpretada pelos evangélicos radical demais. Definitiva. Sem chance de remissão.
Thais nunca soube, mas aquela conversa me impactou – e me mudou. Então, um dia, para surpresa da minha família, eu anunciei que iria com meu pai ao cemitério no dia 2 de novembro. Ele ficou muito feliz. Foi um dia mágico, na verdade, porque me senti compartilhando com meu pai algo que lhe era muito íntimo, até dolorido, e que ele vivia sozinho.
“Sui generis” como ele é, não acredito que meu pai creia que as velas que acende de fato ajudarão meus avós ou seus amigos em qualquer atividade no outro plano. Nem mesmo sei se ele tem certeza de onde eles estão na suposta outra vida.
Embora nunca tenhamos conversado sobre essa parte do ritual, percebi que, na verdade, para ele, ir ao cemitério e acender suas velas é mais como um memorial. Uma forma de homenagear aquelas pessoas queridas que não estão mais entre nós, externar a falta que elas fazem, refletir sobre o curso da vida e lembrar os momentos que com elas passamos e que, muitas vezes, na correria do dia a dia, deixamos desbotar. Rezar por elas também, é claro – e, de um ponto de vista, compartilhar esse sentimento de respeito, em silêncio, com outros que estão fazendo a mesma coisa e que conhecem a mesma dor. Sinceramente, achei isso muito bonito e, pelo menos, foi a forma pela qual passei a entender e sentir o Dia de Finados, já que a ideia de céu, inferno e purgatório faz pouco sentido para um desconvertido.
Muitos amigos não entendem por que, não sendo eu mais um “cristão”, guardo essa data. Estranham ainda que eu tenha iniciado a tradição depois de desconvertido.
São essas as razões.
Já perdi algumas pessoas, algumas muito jovens e quando eu era muito jovem. Não sei se o fato de eu elevar meu pensamento a elas as ajuda, nem mesmo se existe outro plano, nem se elas estão lá – mas faz bem. Honrar a própria história e lembrar-se de quem merece é algo que comove. Por isso, amanhã, estarei novamente lá, acendendo minhas velas – e vendo-as queimar com minhas lembranças.
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