terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Doação de sangue gay


 Por que os gays não podem doar sangue

Uma explicação epidemiológica que pode mudar até a natureza da pergunta

por João Marinho

A situação já aconteceu centenas, talvez milhares de vezes no Brasil. Um homem gay recebe o pedido desesperado de um amigo ou amiga para doar sangue para um parente dele/a – e, ao chegar ao hemocentro, não é autorizado pelo fato de... Ser gay.
“Preconceito, homofobia!”, bradam os mais afoitos – mas será mesmo? O artigo abaixo procura esclarecer minha posição pessoal sobre uma das maiores polêmicas na área da Saúde, e pode não ser o que você pensa.

Ser gay ou transar com homem?
Antes de tudo, vamos deixar claro uma coisa. De fato, deixar de autorizar um homem a doar sangue por ele ser gay não encontra base legal e é irregular.
A orientação atual do Ministério da Saúde, via Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), não sustenta que a orientação sexual, em si mesma, seja impeditivo para doar sangue. Em suma, ninguém deve ser impedido de doar sangue apenas por ser homossexual.
No entanto, existe mesmo um impedimento: é necessário que o homem não tenha feito sexo com outro no prazo de 12 meses anteriores à doação. Não é impossível, mas, para muitos, na prática, isso significa um impedimento definitivo para a maioria dos gays. Afinal, quem fica 12 meses sem sexo? E por que há esse impedimento?
O problema é o risco diferenciado para homens que fazem sexo com homens no prazo de um ano – e falar “Homens que Fazem Sexo com Homens”, ou HSH, é importante porque, dentro da área da Saúde, essa é uma categoria ampla.
Inclui, obviamente, os gays – mas também homens biológicos de qualquer orientação sexual ou identidade de gênero, o que abre o leque para incluir travestis, bissexuais, mulheres trans, fãs de travestis e até aqueles homens héteros que, eventualmente, tenham “experimentado algo diferente” – e essa amplitude será importante para discutirmos se realmente há homofobia.
No entanto, vamos aos números. As últimas estatísticas do Ministério da Saúde indicam que, nessa população de Homens que Fazem Sexo com Homens, existe uma prevalência de 10% em relação ao HIV, tomado o período de 1 ano. Já na população masculina em geral, a prevalência é de 0,8% em 1 ano, o que supõe que, se separarmos os HSHs desse “bolo geral”, o percentual do restante cai ainda mais.
Entretanto, mesmo se considerarmos que a prevalência para homens exclusivamente héteros para o HIV é de 0,8%, tendo em vista que a prevalência entre HSHs é de 10% e que, hipoteticamente, os HSHs poderiam compor, por exemplo, 10% da população masculina, isso significaria mais que o dobro de aumento na probabilidade de haver coletas infectadas por esse vírus, caso os HSHs fossem todos liberados para a coleta de sangue. De fato, de acordo com o Hemorio, por exemplo, há resultados de pesquisas científicas nacionais e internacionais que “ainda demonstram um risco aumentado de transmissão de agentes infecciosos através de transfusão de sangue proveniente destes doadores [N.E.: homens que fizeram sexo com outros em um ano]”, enquanto, infelizmente, ainda não existem trabalhos científicos que demonstrem que a relação estável entre homens reduza este risco, conforme esclarecimento postado a usuários de redes sociais.
Assim, embora a determinação pareça injusta, pois “despreza” os 90% de HSHs soronegativos e/ou que, em tese, usaram preservativo, epidemiologicamente, justifica-se, porque é melhor perder 90% de um público específico do que ganhar mais que o dobro de coletas infectadas.
Infelizmente, o Ministério da Saúde possui uma dezena de literaturas e estatísticas para justificar sua posição. Além disso, existem outros dois argumentos: a norma brasileira é mais flexível que a de outros países, como os Estados Unidos. O segundo argumento é que, de fato, desde fins dos anos 80/início dos 90, praticamente ninguém se infecta por doação sanguínea.
É preciso observar também que este tipo de estratégia estatístico-epidemiológica não é restrito à doação de sangue. Quando fui voluntário da pesquisa de vacinas contra o HIV no CRT/DST-Aids de São Paulo, fui informado de perfis distintos de voluntários para as diferentes fases de pesquisas.
Para estudos de fase I, que testa a segurança do produto, eram necessárias pessoas mais “distantes” do vírus HIV. Então, valiam-se de voluntários que mantivessem uma relação monogâmica estrita, entre outros tipos de voluntários, para essa fase. Enquanto a fase II, que começa a testar a eficácia, requeria voluntários solteiros com boa rotatitivade de parceiros sexuais. Em ambos os casos, os voluntários precisavam ser soronegativos.
Claro que o fato de estar em uma relação monogâmica estrita não impede ninguém de adquirir o HIV. Basta apenas uma “traição” desprotegida. Do outro lado, a pessoa que tem vários parceiros e se protege com todos acaba não adquirindo. Temos “n” exemplos disso para contar.
No entanto, em termos de estatísticas epidemiológicas, é mais provável encontrar um maior número de coletas HIV-positivas entre solteiros com ampla rotatividade de parceiros que entre casados com relação monogâmica estrita, razão pela qual os segundos são preferidos para a fase I. É para isso que servem os modelos matemáticos (probabilidade/estatística). A história da doação de sangue segue o mesmo paradigma, que não é estranho à área da saúde, como vemos.

O problema é a aids?
Muitos veem na questão do HIV também um resquício de aidsfobia ou da ideia de “grupo de risco”, que tantos prejuízos fez nos anos 80. No entanto, não é isso que se propõe. A questão é de epidemiologia e matemática e, enquanto os HSHs continuarem a sustentar dados epidemiológicos tão maiores que a população masculina em geral – diz-se 13 vezes maior –, o benefício não compensa, até prova em contrário, o custo do ponto de vista da saúde pública.
Além disso, o HIV não é a única preocupação. Infelizmente, os HSHs também são mais vulneráveis estatisticamente a outras infecções, como a hepatite B, por exemplo. Para os mesmos, existe até indicação de fornecer a vacina. Ultimamente, tem chamado a atenção o crescimento no número dos casos de sífilis, tanto no Brasil como em outros países, notadamente os Estados Unidos.
Fazendo um exercício hipotético de modelo matemático, pensemos na hepatite B, por exemplo, que tem uma prevalência sustentada entre gays – inclusive, em virtude do sexo anal e da prática do sexo oral no ânus.
Se, no grupo dos héteros casados, você tem uma probabilidade “x” de encontrar “n” coletas contaminadas com o vírus da hepatite B; e entre gays solteiros, você tem uma probabilidade “2x” de encontrar “n” coletas contaminadas, então se prioriza, para doação, o primeiro grupo.
Ninguém disse que héteros casados não têm hepatite B. Nem que, se for gay solteiro, você terá. No entanto, no primeiro grupo, a probabilidade de encontrar uma coleta contaminada é menor. Assim, elimina-se o segundo grupo e, ao primeiro, aplicam-se os exames.
Vale dizer que, se, nessa hipótese, a probabilidade, com o algoritmo atual, seria de encontrar 1 coleta contaminada em mil, a ampliação para os gays solteiros aumentaria esse valor de 2 coletas em mil. Parece pouco, mas já é 100% de aumento. Multiplicado por milhões de coletas, o impacto não é nada irrelevante.
Assim, o esquema de doação segue um algoritmo que busca afastar ao máximo o risco residual de qualquer infecção, tornando-o próximo de zero. Somente após isso, são finalmente aplicados os exames de diagnóstico, que, então, praticamente igualam a zero esse risco, num desvio padrão medíocre.

E os testes, não servem para nada?
Claro que servem, mas é preciso entender o seguinte: os testes são a ponta final, e não a ponta inicial, do algoritmo (a sequência de operações que antecede a doação de fato). Depois de todas as probabilidades estatísticas serem reduzidas ao máximo é que se aplicam os testes, para deixá-las próxima de zero – e não o contrário.
Além disso, existe o que se chama de “janela imunológica” para várias das doenças que se procuram evitar numa doação: é o prazo em que a pessoa já é portadora, mas os exames ainda não identificam essa condição. Hoje, com os ELISAs e outros exames de 4ª geração, para o HIV, é de 1 a 2 meses, mas ainda existe.
A própria literatura médica refere a existência de um “período de eclipse” do HIV, quando nem os exames mais potentes e modernos o detectam. Afora os ELISAs e outros exames mais modernos, atualmente, o exame com menor janela para esse vírus em particular é o PCR-HIV-DNA-qualitativo, que já é capaz de detectar cópias dos vírus após 15 dias e 99% de sensibilidade. No entanto, este exame é caro, notadamente para ser adotado como estratégia de detecção – tanto que, tradicionalmente, só é adotado nesse sentido para recém-nascidos, e, sim, questão de valores impacta políticas públicas de saúde.

Por que só os gays?
Este é o erro mais comum de quem defende o fim de toda e qualquer interdição nesse sentido. Primeiro, porque já esclarecemos que a interdição específica que estamos tratando não é “para gays”, mas para Homens que Fazem Sexo com Homens 12 meses antes da doação.
O grupo é maior que os gays, para se falar de “homofobia”. Além disso, mulheres que se relacionam com mulheres – incluindo as lésbicas, que também são homossexuais – não são afetadas pela regra.
Ademais, existe uma série de outras ocasiões em que a doação não é aceita, muitas delas afetando os héteros. Há restrições relacionadas à tatuagem, por exemplo, a quem foi vítima de estupro ou abuso sexual, a quem fez sexo com parceiro ou parceira em troca de dinheiro ou drogas, quem teve parceiros ou parceiras ocasionais em 12 meses, etc., e isso independentemente de outros fatores, como o uso da camisinha. Então, não basta “ser hétero” para doar sangue, não.
Até o momento, a melhor estratégia de majorar os bons resultados em doação de sangue e minimizar o encontro de coletas contaminadas tem sido o cruzamento de dados, evitando grupos com ampla prevalência, ou prevalência acrescida, e isso inclui de HSHs a pessoas que realizaram tatuagem.

E meu direito de doar? Posso mentir?
É claro que é difícil ser “do contra” em um assunto tão sensível. Claro que boa parte dos gays que querem doar vão aos hemocentros imbuídos de uma causa nobre, que é a tentativa de salvar vidas.
No entanto, primeiro, não existe o “‘direito’ de doar sangue”. A pessoa tem, sim, o direito de se candidatar e de se submeter ao algoritmo. Não é o hemocentro de quem a obrigação de aceitá-la. A obrigação dele é seguir as normas de Saúde.
O que existe, sim, é o direito de não receber sangue contaminado – ou, pelo menos, que as políticas de saúde reduzam ao máximo a probabilidade. Quem doa vai lá imbuído de um ideal nobre, mas, de antemão, está ciente de que deverá se submeter ao algoritmo e que talvez seja impossibilitado de doar por uma série de fatores, até porque, já esclarecemos, o veto aos HSHs no prazo de 1 ano não é a única barreira do algoritmo.
Agora, quem recebe o sangue não tem o mesmo poder. A pessoa recebe porque precisa – e, muitas vezes, em estado inconsciente. Como fica se, pela adoção de determinadas políticas, essa pessoa adquire uma infecção? Certamente, isso dá margem a acionar o Estado para indenização, se não para responsabilizar a terceiros até criminalmente.
Então, coloque-se como um gestor de saúde: você aprovaria, baseado apenas na concepção de não preconceito, a derrubada de uma norma, contra todas as estatísticas técnicas apresentadas, contra o fato de que há décadas ninguém recebe sangue contaminado e sob o risco de ver nascer ações contra o Estados ou de ter de gastar muitíssimo mais por exame para reduzir a janela imunológica, sem ter em mãos estudos outros que sustentem que essa seria a melhor opção?
Difícil.
Evidentemente, como gay, me sinto irmanado a outros que, apenas por terem transado com outros homens, não podem doar. No entanto, sempre insisti, antes e agora, que a única forma de procurar derrubar a norma é recorrer a literaturas e estatísticas afins e provar, por A+B, empiricamente, que a Anvisa pode estar errada.
Até sugeri que a ILGA Brasil interviesse, posto que fiquei sabendo – não me aprofundei para ver em quais condições – que, na França, os gays e outros HSHs são liberados a doar. Ninguém do movimento LGBT se manifestou sobre isso, para saber o que os franceses argumentaram.
Não sou, portanto, “contra a doação de sangue gay”. Sou a favor das políticas atuais pelos dados atuais que ela possui e entendo que, para alterá-las, precisamos ter literatura e embasamento suficientes, pois em ciência, a lógica é só a primeira parte do processo – é preciso evidência empírica, e isso nos leva a outro ponto: você pode até mentir, mas não deve, pois é sua responsabilidade também zelar pelo funcionamento das normas de segurança.
Ademais, ao recorrermos à ciência, também devemos estar abertos à possibilidade de que talvez o que encontremos justique, sim, a norma do MS. Que, no fim do processo, há a hipótese de termos de reconhecer “é, o Ministério da Saúde estava certo”. É assim que se faz ciência.
Já outro caminho é exigir do poder público uma maior atenção no combate ao HIV e às hepatites na população HSH – coisa que tem sido um tanto quanto deixada de lado, especialmente no governo homofóbico de Dilma – e depois pensar no assunto da doação sanguínea, quando os índices abaixarem. Argumentar apenas com base na ideia de “direito de doar” e de “preconceito” é, a meu ver, insuficiente.
Em tempo: se você for recusado apenas pelo fato de ser gay, deve denunciar o hemocentro e o agente de saúde, pois o correto é o agente de saúde perguntar há quanto tempo você não se relaciona com outro homem: não eliminá-lo com base apenas na sua orientação sexual declarada; e, se você for lésbica, muito menos! – e apenas para reforçar: o presente artigo enfoca apenas a interdição específica para quem é homem que fez sexo com homem em 1 ano. Existem outras interdições, algumas das quais mencionadas, que, inclusive, afetam os heterossexuais, mas não são o tema deste artigo. Para quem quiser saber mais, aqui está o texto completo da atual portaria do Ministério da Saúde, publicada em novembro/2013.

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Beijo Gay: de novo

Sobre o beijo gay na Rede Globo e a enquete do UOL



por João Marinho

Não sou tradicionalmente uma pessoa que confia em enquetes virtuais, nem mesmo nas dos grandes veículos da internet, como o UOL. Por isso, quase nunca faço campanhas por elas, ao contrário de alguns quadros do movimento LGBT, que sempre nos pedem para votar nessa ou outra "pesquisa" de determinado veículo.

Isso porque, como todos sabemos e os próprios sites informam, mesmo quando se trata de um grande veículo da internet, essas enquetes não têm valor científico, por não seguirem os ditames da Estatística em termos de amostragem e outros elementos, para começar.

Além disso, não raro se limitam aos leitores daquele veículo, que estão sabendo da enquete em curso. Também não raro, permitem votos múltiplos, o que desequilibra qualquer confiabilidade, ainda mais quanto a turma do "contra tudo que signifique progresso" começa a fazer campanha e convence muitos desocupados a passarem o dia votando apenas para mostrarem que "Deus" ou qualquer outro ser ilusório não gosta disso ou daquilo – e se incomoda com a felicidade alheia e com os direitos civis das pessoas.

Até mesmo quando instituições públicas, como o Senado, acionam enquetes, me posiciono contra e, tradicionalmente, nem voto. Não considero nem mesmo que seja seu papel submeter direitos fundamentais a votação popular. Afinal, quando estamos falando de minoria, soa racional que, talvez, a maioria vote contra a mesma – e isso é uma distorção da democracia, que é o governo de todos e deve garantir isonomia para qualquer cidadão, e não para aqueles que fazem parte "da maioria". Como diria Tocqueville, quando isso acontece, não temos uma democracia, mas uma "ditadura da maioria" – e dos Estados de socialismo real aos excessos dos jacobinos na Revolução Francesa, a humanidade já experimentou o que de sórdido acontece quando isso se instala.

Também não acredito que a Rede Globo levará o beijo gay à novela Amor à Vida – e, considerando o trabalho magistral que Walcyr Carrasco tem feito até agora, a ponto de levar a população a torcer por um casal gay, talvez nem precise. Da homofobia aos relacionamentos héteros de fachada, da sexualidade flexível masculina (representada na figura do mecânico) aos gays que buscam constituir família, da bicha má ao carneirinho, muitas das pautas por que tanto lutamos apareceram na tela. Não importa se você gosta da obra como um todo, isso é um feito inédito e, espero, o primeiro de muitos. Até a quantidade de personagens gays impressiona.

No entanto, sempre existe um argumento estranho para não mostrar um beijo entre dois homens em uma novela: o de que o público "não está preparado". Como se presenciar um carinho espontâneo oriundo do amor, mesmo que numa obra de ficção, requeresse "preparação". Além disso, vale dizer, mudanças culturais e conquista de direitos não devem responder a esse tipo de argumento sem fundamento. Afinal, faz parte da ideia de mudança... Mudar – e é mais do que normal que isso aconteça por meio de choques e desconfortos. Já imaginou se a Princesa Isabel não tivesse assinado a Lei Áurea porque a população brasileira "não estava preparada para o fim da escravidão" ou se o Congresso Nacional, nos anos 70, não tivesse aprovado a lei do divórcio porque a "sociedade não estava preparada para 'demolir a instituição do casamento'"? E você vai se espantar, mas não estava nessas e em outras ocasiões.

Ademais, acho, no mínimo, curioso que o público não esteja "preparado" para assistir a dois homens externando seu sentimento – mas esteja mais do que pronto para ver uma mulher explorar um cego por vingança, um homem levar facadas ou uma criança jogada em uma caçamba.

Assim, mesmo que a Globo não vá exibir o beijo gay – e não acredito que vá –, penso que demolir esse falso argumento tem seu mérito. Assim, é interessante, sim, que os LGBTs se organizem em campanha e votem na enquete do UOL sobre a questão: http://televisao.uol.com.br/enquetes/2014/01/13/voce-acha-que-o-felix-mateus-solano-e-o-niko-thiago-fragoso-deviam-se-beijar-em-amor-a-vida.htm .

Se não vai mudar a realidade do beijo gay, que, pelo menos, mostremos a verdade por trás do falso argumento: as redes de tevê simplesmente não querem se indispor com a parcela conservadora de seu público e anunciantes – e não é porque a maioria "não está pronta". Desde ontem, o NÃO ao beijo gay tem ganhado terreno, embora o SIM ainda vença. Que tal dar a sua contribuição e convencer seus amigos?

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Ainda falando sobre promiscuidade


Ainda pensando sobre o comportamento sexual, algumas pessoas tendem a confundir a promiscuidade com a prostituição, obviamente, tendo, a partir de uma leitura cristã, os valores elencados.

Essa seria uma discussão exaustiva, caso se fosse aprofundar no mérito, entretanto, pode-se compreender o conceito prostituição dentro da cultura cristã e, para a surpresa de muitos, é mutável , tal conceito, dentro da própria Bíblia. Assim, muitas vezes a prostituição é somente feminina, no caso da mulher pega em flagrante adultério, somente a mulher é levada em julgamento; outras vezes, ela é somente uma questão ritualística, alguém está adorando outros deuses e não Yahweh; outras vezes, adquire um sinônimo abrangente, sendo todo aquele que vive uma vida sem regras, desregrada, entretanto, no caso do Filho Pródigo, que vivia essa vida dissoluta, ele não é acusado de prostituição; ainda há a prostituição cultual, envolvendo homens e mulheres, o sexo ganha a esfera sagrada e, por ser prática dos cananeus que rivalizavam com Israel,  assume o peso da abominação.  

Há ainda o comportamento bíblico, perfeitamente aceitável na cultura hebraica, mas que hoje seria,  para os ocidentais cristãos, atos de prostituição, por exemplo:  Abraão teve mais de uma mulher;  Salomão um harém;  no Novo Testamento há a recomendação apostólica que o bispo seja esposo de apenas uma mulher, tal recomendação revela a prática da poligamia entre os próprios cristãos como algo natural.

Como a questão é cultural, a promiscuidade, muitas vezes levantada contra os homossexuais, é um entendimento que não foge à esfera. Nossa sociedade foi educada, por anos, por séculos, a primar por um comportamento “ideal”: o homem monogâmico e macho, que se casa com uma mulher monogâmica submissa e tem filhos. Os gays não têm espaço nessa construção de mundo, a eles resta apenas à sentença de viverem marcados com a desonra da promiscuidade, dos encontros furtivos, à noite, nos becos, vielas, nos guetos, contraindo todas as espécies de doenças, correndo todos os riscos de mortes imagináveis, vivendo solitários, sem família, destruídos pelo próprio comportamento sexual, marginal.

Obviamente, que o ser humano é capaz de ressignificar o seu espaço, inclusive os espaços de opressão, não sendo diferente com a comunidade homossexual que, através de alguns pensadores ilustres e gays, assumiram o modus vivendi , trouxeram expectativas e chocaram a sociedade conservadora, quando declararam o orgulho de serem gays, e de viverem à moda gay.

A intensificação do discurso da promiscuidade como pecado e a tentativa de se negar os direitos civis aos mesmos, por exemplo, o casamento gay,  são as apelações dos reforços de se deixar na marginalidade aqueles que não se enquadram nos parâmetros heterossexuais cristãos dessa sociedade.  Ou seja, não dar espaços iguais para que o preconceito e a segregação continuem regendo um valor injusto. Aqui, nesse aspecto, tem-se uma questão crucial, como a promiscuidade gay é renegada ao subcomportamento desde o século XIX, e o orgulho gay ser uma novidade do final do século XX, a compreensão de que a promiscuidade seja algo imundo, seja pecado, seja nefasta, é compreensão tácita, o que faz de muitos gays, muitos deles jovens, que vivem às voltas com o mundo, entrarem em verdadeiras crises existenciais por não compreenderem adequadamente o papel social que desempenham e a conformidade de seus desejos e satisfações, enquanto seres humanos.


Nestes aspectos a promiscuidade é tão somente uma questão de leitura a quem serve o discurso e para onde se caminha na construção da identidade gay no século XXI. Tentadora a reflexão, que continuaremos em uma próxima oportunidade.  

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

A culpa é da promiscuidade: um erro conceitual


Alguns argumentos trazidos em termos de apologética, em questão da promiscuidade ser um mal em si mesmo, tentam sair do viés moral-religioso para o viés cientifico,  sem, contudo, serem bem sucedidos no feito.  Afinal, dizem os profetas da desgraça alheia: “transar com camisinha não é 100% de garantia de que não se contrairá uma DST, como, por exemplo, o HPV e isso cientificamente comprovado”.

Para tais pessoas do argumento retromencionado, o jeito eficaz para  não se contrair doenças sexualmente transmissíveis é não ser promíscuo nunca, afinal, a doença reside na promiscuidade de per si. Ou seja, se seguíssemos essa lógica nem respirarmos mais poderíamos. Imaginem que a “Gripe Suína- H1N1”- matou em 2009, segundo dados da OMS (organização Mundial da Saúde), uma média estimada em 570 mil pessoas (NewScientist). A saber, uma das formas de transmissão da doença é se respirar o ar  do mesmo ambiente infectado pelo vírus.

Se em contra partida, tomando por base os dados da Gripe Suína, que em sua forma epidêmica foi fatal, compararmos o número de óbitos causados por câncer de colo de útero, HPV transmitido por relações sexuais, em Brasília, no ano de 2012, concluiremos que o monstro não é tão feio como se querem pintar, uma vez que 84 mulheres faleceram vítimas do mal, em uma população de 2.648.532 habitantes.

Poderíamos pensar na Dengue, doença comum no Brasil, por exemplo, mata mais que o HPV e não deixa muito tempo para o paciente ser tratado. E agora, diante do exposto, a quem deveríamos culpar por essas moléstias? A questão é muito óbvia, trabalha-se um conceito a partir de uma premissa falsa: A promiscuidade é a fonte da doença. Enquanto, na verdade, o mau uso do corpo é a causa.

Ir ao médico regularmente, fazer os exames de rotina, cuidar do corpo, da saúde, é um dever de quem quer viver bem. Fatalmente, vamos contrair doenças, não estamos livres delas, mas se tivermos o diagnostico precoce das mesmas, em muitos casos. elas são inofensivas como, por exemplo, o diagnostico eficaz do câncer de colo de útero em seu estágio inicial.

Ninguém morre por fazer sexo; as pessoas morrem por não se tratarem, por não procurarem o médico, por acharem que tudo está bem. Jogar a culpa do descuido pessoal no comportamento sexual, chamando-o  de promiscuidade e elaborar conceitos morais religiosos, querendo dá-los  o ar de cientificidade, é uma estupidez que camufla o preconceito e  a ignorância e nada contribui para uma melhor qualidade de vida.

Gays são promíscuos? E quem não é?


Carpe Anum // Carpe Culum


2014 e uma discussão antiga volta com os ares de novidade. Não consigo compreender bem, mas parece-me que existem  algumas pessoas, mal-intencionadas, que fazem do discurso do gay promiscuo, causador dos males da humanidade, um movimento sádico, silencioso, capaz de infringir culpa e reprovação em um número enorme de pessoas mal resolvidas, enquanto os propagadores desse discurso do “gay-família”, monogâmico, seguem em suas orgias, fugidas dos olhares dos pobres coitados, que compram tais ideais por terem verdadeiras patologias psíquicas em questão.

Para mim, e isso é muito singular, tais pessoas agem assim como uma forma de compensar o lado promiscuo do caráter com uma reprovação conceitual, algo que possa valer um “mea culpa” até o próximo bacanal sem camisinha, e todos os atos sórdidos e picantes que você possa imaginar. Não obstante, que sempre nas reprovações de condutas, lucubradas em gabinetes, a temática das DSTs vem à tona, o uso da camisinha sempre é insuficiente para salvar os seres sexuados do sexo, sendo as relações monogâmicas e estáveis o sinônimo da garantia da vida segura e quase eterna.  

O problema que vejo nesse movimento, que estou percebendo, não é a promiscuidade em si, não são os atos seguros ou inseguros em si, mas a hipocrisia. Os primeiros a atirarem as pedras, são também os primeiros a praticarem as orgias e pasmem:  na maioria das vezes são os primeiros a transmitirem as DSTs, ou seja, pregam um comportamento de gabinete extremamente conservador, mas escondidos fazem o contrário daquele que divulgam.

Assim, longe de ser preconceituoso, mas é estranho uma pessoa, por exemplo, ir para as redes sociais, envolver-se em brigas de opiniões estrondosas em relação à promiscuidade, enquanto, ao fim do dia, faz sexo sem camisinha com 08-10 pessoas, sendo a mesma portadora do vírus HIV. Por isso, digo  que o problema reside na hipocrisia. Primeiro, a pessoa que divulga um discurso, deveria ser a primeira a vivenciá-lo (isso não só parece ser óbvio, mas é o que se espera). Segundo, se a pessoa é portadora de um comportamento de risco e que deseja se envolver com  outra pessoa sexualmente, é de bom tom que as coisas sejam esclarecidas entre as partes, para que todos tenham a chance de praticarem seus atos sabendo, de fato, o risco envolvido no mesmo. Terceiro, melhor que fazer “mea culpa” na internet é jogar limpo com os parceiros sexuais, não tendo um comportamento predador, sendo honesto em relação à situação específica.

Doenças se pegam pelo ar, pela mão, pela comida, pelo sexo, enfim, basta estar vivo para se adoecer, agora fazer o terrorismo, dizendo que a camisinha não é suficiente para a prevenção das DSTs, que só o abandonar da promiscuidade será capaz de nos conduzir a uma vida saudável, enquanto nos bastidores se vive uma vida promiscua e sem regras é desumano... É  querer colocar limite no outro sem ser verdadeiro com o mesmo; uma forma de disfarçar a covardia de se dizer quem é, ou em que estado se encontra, tentando livrar o maior número de pessoas possíveis de serem vítimas da própria torpeza em que se encontra assentado.

Em 2014, viva o ânus, viva o cu, faça os testes de DSTs, transe bastante (com segurança, com camisinha), e se em alguma situação as coisas tiverem que ser melhor esclarecidas, seja verdadeiro, melhor do que vir para internet falar asneiras, aliás, que nem mesmo do próprio discurso se coloca em prática.

2014 mais amor e menos cinismo.