segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Fatores impulsionadores da Reforma: o contexto filosófico

O período da baixa Idade Média- ou os dois séculos anteriores à Reforma trazem um conteúdo filosófico existencial vital em face das mudanças e desafios modificadores da mentalidade. A Igreja precisava se rever- a muito política e fé se tornara um complexo de desmandos, e apelos de reforma eram constantes. Desta feita, formas de piedade leiga se intensificaram e com elas o interesse nas relíquias, nas peregrinações, nos santos...

Alguns movimentos se mostraram interessantes, por seu conteúdo de fé, às vezes de forma radical, mas caracterizada pelo apelo de mudança, tais como: os franciscanos espirituais, os valdenses, os hussitas, os Lollardos. Estes movimentos se ligavam necessariamente, como respostas às sublevações políticas e religiosas que afetavam, diretamente, o espírito dessa época.

Morte, culpa, perda do sentido tinem como existenciais amplamente presentes no final da Idade Média; um desassossego com o sofrimento impregnou a Europa- ligavam-se a este fenômeno:a fome e a peste. No início do séc. XIV, a crise agrária era intensa, e alguns praticavam o canibalis
mo, sendo cadáveres de criminosos retirados das forcas e comidos pelos pobres na Polônia e na Silésia, somando-se a isso a peste bubônica, que atingiu o ápice na Inglaterra por volta do ano de 1349, e arrasou em um terço a população da Europa.

Ainda, no séc. XVI marinheiros de Cristóvão Colombo trazem do Novo Mundo afilis, ou uma nova peste. Também, a invenção do canhão de pólvora transformou a guerra em um novo modelo de selvageria. A morte passou a ser manifestada no imaginário medieval de forma contumaz: sermões, esculturas, xilogravuras, pinturas etc... Sepulturas eram adornadas com imagens de cadáveres nus, com bocas escancaradas, punhos cerrados e entranhas devoradas por vermes. Uma das mais populares representações foi a "Dança da Morte". A morte na forma de esqueleto, aparecia como uma figura dançante, tragando suas vítimas. Ninguém poderia escapar de suas mãos.


Assim. morte e culpa passaram a caminhar juntas, sendo realidade presente entre homens e mulheres. Inclusive em uma declaração de João Calvino:

"De onde vem a morte, senão da ira de Deus contra o pecado? Daí surge o estado de escravidão ao longo de toda vida, que é ansiedade constante na qual as almas infelizes são aprisionadas".

Pode-se entender que a morte implicava julgamento, e este colocava o pecador face a face com Deus- santo e irado. Sem embargo, esta cena é pintada no leito da morte onde anjos e demônios lutam, igualmente, pela posse do moribundo. Daí a necessidade de aliviar a culpa, de expiar os pecados. Surge, assim, as penitências, em que às mais radicais, pessoas viajavam de cidade em cidade se acoitando publicamente com chicotes de couro, na esperança de expurgar os pecados seus e do toda a cidade! Entretanto, a maioria das pessoas preferiam o usual, oficializado pela Igreja: confissões, sacramentos, peregrinações, relíquias, venerações dos santos, rosário, adoração ao santíssimo sacramento, INDULGÊNCIAS. Tudo isso assegurava o fiel de estar diante de Deus de maneira apropriada.

Obviamente, que o efeito prático disso não era algo tão simples assim... Tinha que ser meritório, e a pressão para se purificar dos pecados, incluindo-se os motivos interiores e, às vezes, irreconhecíveis colocava um peso insuportável sobre o penitente.

Ainda, a imagem do purgatório e do inferno realçavam o etos medieval de um Deus irado e de juízo, diante de cuja ira os homens culpados só poderiam estremecer. Tudo isso refletia a crise de sentido, e a resultante era essa ansiedade cega em todas as áreas da vida; as antigas fronteiras, imutáveis, estavam sendo transgredidas, a descoberta do novo mundo despedaçou a geografia. Copérnico, Galileu e Kepler estenderam amplamente as fronteiras do universo, removendo a terra - e a humanidade- do centro da realidade criada. As fronteiras políticas, entre as nações, es
tavam literalmente prontas para ser remodeladas, como indicam a guerra dos Cem anos, entre França e Inglaterra, e a incursão de Carlos VIII à Itália (1494).

Do outro lado da escala social, os camponeses lutavam por livrarem-se das correntes do feudalismo mediante protestos e súplicas, quando possível, e mediante guerras sanguinárias quando necessário. Todas essas questões levantaram situações novas e radicais para a cultura medieval. A cosmovisão de um universo ordenado, organizado em um sistema fixo de hierarquias celestiais, perfeitamente refletido numa sociedade harmoniosa na terra, tornou-se insustentável.

Em 1484, o Papa Inocêncio VIII expediu sua bula Summis Desiderantis, que autorizava dois inquisidores dominicanos a empreender o extermínio sistemático da bruxaria. Por sua vez, eles produziram o infame livro Malleus Maleficarum, ou "Martelo das Bruxas", um texto oficial contendo instruções sobre investigação de mulheres pobres, velhas e desprotegidas - solteiras- que foram sujeitadas a torturas inúmeras. Ao todo, por volta de 30.000 execuções por feitiçaria aconteceram até o fim do século XVI.

O moralismo nervoso e as tentativas de aplacar Deus irado serviram para agravar as ansiedades fundamentais de morte, culpa e perda de sentido. A maior realização da reforma foi ter sido capaz de redefinir essas ansiedade sob os aspectos de novas certezas. O mal- estar espiritual da baixa Idade Média não foi a causa da Reforma, mas seu pré-requisito.

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