domingo, 15 de maio de 2011

Religioso e sem juízo




Resposta ao artigo “Dois surdos: Os religiosos e o movimento gay”

por Renato Hoffmann e João Marinho


William Douglas, juiz federal, mestre em Direito e especialista em políticas públicas, escreveu um artigo para o blog evangélico Genizah (http://www.genizahvirtual.com/2011/05/dois-surdos-os-religiosos-e-o-movimento.html) analisando a decisão do Supremo Tribunal Federal quanto à união homoafetiva e sua equiparação às uniões estáveis heterossexuais, com o mesmo status de entidade familiar.

O Genizah é um blog evangélico que tem se destacado da esmagadora maioria por representar uma parcela dos fiéis evangélicos que adota uma visão moderada e até progressista em relação a assuntos de grande impacto social e ao papel do Estado laico e do cristianismo dentro de uma autêntica democracia, razão pela qual seu público leitor saudou o artigo de William Douglas como equilibrado e sensato. Nós, do Gospel Gay, no entanto, discordamos dessa avaliação – e abaixo explicamos o porquê.

Juiz versus clérigo

Logo de início, é curioso que, embora juiz e mestre em Direito, William Douglas tenha escrito tão-somente como um pastor evangélico, como um padre católico, ou como um religioso qualquer, que, numa miopia dogmática, se abstém do bom-senso e dispara com desprezo contra a boa razão.

O artigo, no limite, converteu-se em um movimento sôfrego de defesa ao dogma primeiro de fé, irrefletido, mas tacitamente internalizado, movendo na corrente social um antigo conceito do século XIX: o do culto ao macho frente toda e qualquer forma de situação contrária ao mesmo.

No entanto, é preciso dizer, ainda bem que, embora juiz e mestre em Direito, Douglas tenha se expressado religiosamente – porque, juridicamente, sua razão foi tomada de assalto, faltando-lhe critérios teóricos da própria ciência jurídica, das teorias gerais do Direito, das teorias gerais do Estado democrático e da função contramajoritária do Supremo.

Aliás, gostaríamos de nos prender aqui: função contramajoritária. Ad argumentandum tantum[1], o juiz federal se referiu a uma “reescrita” constitucional pelo STF, que teria se visto pressionado por lados antagônicos e sucumbido a um atentado contra a liberdade de opinião, crença, escolha – e que jamais o STF poderia estabelecer às uniões homoafetivas um “novo” conceito de família, pois, ao lermos as notas taquigráficas, registradas nos anais da Assembleia Constituinte, veríamos que tal assunto foi derrotado na Constituição.

Então, vamos a ela, à Constituição da República, no artigo 5º, inciso XXXV: a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Em outras palavras, embora o casamento homossexual não tenha entrado na Constituição, também não foi proibido por ela, ou seja, o constituinte deixou de celebrar o casamento gay como normatização, mas não o proibiu taxativamente, expressamente, no texto constitucional.

Como, no silêncio da lei, o Poder Judiciário não poderá usar desculpa para justificativa de não julgar, pois, ao fazê-lo, iria contra o preceito constitucional retromencionado, cabe a ele, na ausência da lei, julgar com a analogia, os costumes e os princípios gerais de Direito, atendendo aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum (Lei de Introdução do Código Civil, artigos 4º e 5º).

Data maxima venia[2], nota taquigráfica não é lei – e serve para justificar um momento histórico, um lapso, ou apontar os porquês disso e não daquilo. Entretanto, a lacuna temporal não é estanque ou perene. Caso fosse, as pessoas não envelheceriam, nossa moeda ainda seria o Cruzado, o muro de Berlim não teria caído, o comunismo ainda faria frente ao capitalismo e os hoje estados do Amapá e Roraima ainda seriam territórios nacionais.

Tudo isso está registrado naquele momento histórico – mas não são leis, e o momento histórico flui, modifica a sociedade e é modificado por ela. Vale destacar, inclusive, que, no nascimento da Constituição, a ideia de reconhecimento formal de uniões entre pessoas do mesmo sexo era ainda embrionária. O primeiro país a dar algum tipo de reconhecimento a essas uniões, a Dinamarca, o fez em 1989, e a Constituição brasileira é de 1988. Claro que o juiz William Douglas sabe disso, mas o religioso não quer saber!

Foi, portanto, dessa forma que julgou o STF: na ausência da lei, na lacuna do artigo 226 da CR/88, que havia elevado como família, na Constituição da República de 1988, os casais que, na sociedade brasileira da época, não tinham um registro civil e não eram protegidos pelo Estado, a fim de conceder a eles proteção jurídica. O texto, no entanto, não qualificou, não enumerou todas as famílias possíveis. Apenas, com efeito da dignidade a esse grupo, e isso por princípio norteador da própria Constituição, reparou um mal social, uma vez, que até então, por exemplo, as mulheres eram consideradas como relativamente incapazes; e filhos "naturais", "ilegítimos" como valendo menos do que filhos nascidos de um casamento.

Assim, sistematicamente, evocando o princípio da dignidade humana, o STF, decidiu por ampliar um conceito, de forma analógica, atendendo para os fins sociais ao bem comum. O Supremo não reescreveu a Constituição, como diz um apelo religioso de um argumento débil. Afinal, o Judiciário tem a obrigação de julgar e de colmatar a lacuna ou a falta de lei: poderá e deverá legislar nos casos de Declaração de Inconstitucionalidade por omissão e nas decisões de Mandados de Injunção.

O que assusta é que o juiz William Douglas sabe que esses são instrumentos para fazer valer preceitos não regulamentados, e são soluções reclamadas em todas as constituições anteriores – mas, por um argumento stricto sensu, decidiu-se por esquecer, fazer vistas grossas aos mesmos numa situação em que ninguém perdeu, e a própria sociedade ganhou como um todo. Não podia ser diferente, já que o religioso não vê dessa maneira...

Assim, como cumprir o §1º do art. 5º da CR, que diz: as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata, se não existir a regulamentação e se são incompletas ou condicionadas? Resposta: somente com a atuação legislativa do Judiciário.

Quando o Poder Legislativo se omite, quando ele marginaliza, quando ele exclui, quando ele discrimina pela omissão, há um vício na democracia. Esse vício só pode ser sanado pelo Poder Judiciário, que, para tanto, exerce função contramajoritária no interesse da equidade, da isonomia e da pacificação dos interesses. Se os desiguais não forem socorridos, jamais o Estado democrático será equânime, e isso não é atentar contra os princípios da maioria. É apenas estabelecer o direito da maioria em igualdade a minoria, uma vez que não viola lei e nem consciência fundamental: antes, estabelece a dignidade a todos sem prejuízo a ninguém, ou qualquer pessoa que seja.

O argumento religioso é desprovido do senso de ridículo e da oportunidade ímpar, que se faz por direito, de permanecer calado. Os religiosos seriam mais úteis se eles falassem menos e pensassem mais, afinal, quando o religioso grita, a mais alta nobreza do ser sucumbe às mazelas do irracional.

Outros erros

Não bastassem as incorreções técnicas e jurídicas, nascidas de uma opção pelo lado religioso, o texto de William Douglas faz acusações ao movimento LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais) que não se sustentam frente a uma análise mais acurada.

O argumento mais importante e recorrente, que faz eco às vozes de pessoas as mais preconceituosas e homofóbicas, diz respeito ao suposto fato de que os homossexuais querem “enfiar pela goela” da sociedade seus “postulados particulares”.

Ora, conforme o STF reconheceu no voto do ministro Carlos Ayres Britto, e a própria psicologia séria e científica sustenta, a sexualidade é parte constituinte e indissociável do ser. Essa sexualidade, da qual a orientação sexual é tão-somente um dos elementos, emerge naturalmente, espontaneamente e, por definição, não pode, portanto, ser imposta a ninguém. Resulta daí que, mesmo que quisessem, seria impossível aos homossexuais “enfiar pela goela” de qualquer pessoa sua orientação sexual particular.

Havemos, inclusive, de reconhecer que, não obstante haja essa impossibilidade, não se encontra ainda notícia alguma de que, sequer, existam tentativas nesse sentido. O inverso é que não se mostra verdadeiro. De psicólogos de procedência duvidosa a religiosos tomados de interpretações fundamentalistas, passando por grupos radicais de viés neonazista, são, muitas vezes, heterossexuais – e homofóbicos – que procuram “enfiar pela goela” de homossexuais a orientação sexual heterossexual, por meio de terapias de “reconversão” ou “reorientação sexual”, pregações em púlpitos, internações em “clínicas” irregulares, agressões físicas e/ou verbais, ou ainda negando a eles direitos iguais, como se vê na própria oposição ao correto entendimento do STF quanto às uniões estáveis homoafetivas – por sinal, a opinião do Sr. William Douglas, que reforçou o detrimento da homossexualidade em prol de uma conduta meramente religiosa heterossexualizada!

Ademais, caso entendamos por “postulados particulares” seus direitos como cidadãos, tampouco isso se faz presente. Todos são iguais perante a lei, sustenta um dos princípios mais caros do Direito, celebrado pela CR/88. A lógica se impõe: se há os mesmos deveres civis e legais atinentes a heterossexuais e homossexuais, os mesmos direitos devem ser garantidos a ambos os grupos.

Soma-se a isso uma verdade incontestável: o sujeito primário das ações do movimento gay são os próprios gays. Luta esse movimento contra injustiças, discriminações e ausência de direitos de que são vítimas os homossexuais e afins. Embora tal demanda necessite envolver o restante da sociedade para se fazer real, dela não se extrai que haja o objetivo ou a tentativa de retirar ou diminuir direitos de que o restante dessa sociedade já goza. Correta a interpretação dos ministros do STF: o reconhecimento jurídico das uniões homoafetivas representa um ganho para os homossexuais – mas, nem de longe, representa uma perda para os heterossexuais, que permanecem dispondo dos mesmos direitos de que já dispunham antes da decisão, podendo recorrer a eles conforme sua consciência. Ora, a menos que estivéssemos discutindo a obrigatoriedade da união homoafetiva para homens e mulheres heterossexuais, não se sustenta o argumento de “enfiar pela goela” de ninguém quaisquer postulados que sejam.

Um pouco mais refinado, o segundo argumento procura estabelecer uma oposição entre religiosos e homossexuais, que, seriam, afinal, os grupos que pressionaram o STF e o teriam feito sucumbir, como referido há pouco. Haveria, diz o texto, uma realidade atual de teofobia e homofobia. Não há dúvidas de que ambos os grupos têm se enfrentado politicamente, o que, em princípio, parece dotar o argumento de conteúdo.

Um olhar mais cuidadoso, no entanto, revela que a oposição ocorre, no entanto, apenas em um dos dois lados da questão. Com efeito, não existe tentativa alguma, por parte dos homossexuais ou de seu movimento, de retirar direitos, impedir a consecução de direitos ou perpetuar ou criar, por quaisquer meios, um contexto de intolerância religiosa. Mesmo o famoso PLC 122 não atenta contra a liberdade religiosa, limitando-se a proteger a dignidade e combater a discriminação de que são vítimas os homossexuais alterando a chamada “Lei do Racismo”, Lei 7.716/1989 – que, atentem, já protege contra a discriminação baseada não apenas em raça e etnia, mas também à baseada em procedência nacional e confissão religiosa.

O temor, que pastores e padres espalham, de que a aprovação do PLC 122 levaria clérigos à prisão simplesmente por pregarem seu entendimento particular – e incorreto – de que a Bíblia condena a homossexualidade não apenas não encontra base no texto atual ao PLC 122, como ainda tais clérigos já estão protegidos pela mesma lei que o PLC busca alterar.

Curioso, portanto, o argumento de que, com a aprovação deste, será criada uma categoria “supervalorizada” de pessoas, crítica que não encontrou lugar quando a discriminação por confissão religiosa, por exemplo, foi incluída na lei. Adicionalmente, vale dizer que o PLC 122 não fala de “homossexualidade”, mas de “orientação sexual”, entre outros motivos de discriminação, no que resulta de que, mesmo na improbabilidade de acontecer, também os heterossexuais estarão protegidos caso sua orientação sexual seja motivo de discriminação.

Não há, portanto, oposição do movimento homossexual em relação aos religiosos, mas tão-somente destes em relação àquele. Há homofobia – mas não há “teofobia”, uma vez que tampouco os homossexuais se opõem a Deus – que, de qualquer forma, se encontra tão ausente do discurso de tantos religiosos, incapazes de respeitar o outro e sua individualidade e de reconhecer a justiça quando esta se apresenta.

Na hora em que supostamente houver qualquer ideia, tentativa ou iniciativa, por parte dos homossexuais, de, por exemplo, lutarem contra o casamento de heterossexuais, contra a liberdade de culto e crença ou reduzir garantias constitucionais de quaisquer grupos, poderemos falar de imposição gay. Por hora, o que se vê é apenas uma tentativa de imposição por parte dos religiosos e de suas concepções heterossexualizadas. Eles, sim, que querem “enfiar pela goela” de outrem ideais de fé e concepções de Deus que não são compartilhados por todos e de maneira incompatível com uma sociedade livre, justa, igualitária e democrática.

*Renato Hoffmann é pós-graduado em psicologia pela UFMG, bacharel em Direito pela UNIBH, pós-graduado em Teologia pelo ISIBH e luterano por confissão.

*João Marinho é jornalista diplomado pela PUC-SP, ex-evangélico de confissão batista, livre pensador e possui trabalhos realizados para o movimento gay.


[1] Brocardo latino-jurídico: “apenas argumentando”

[2] Brocardo latino-jurídico para se discordar de alguém ou de algum argumento: “com o devido respeito, mas discordo”.


Foto ilustrativa: os personagens Teddy (Trevor Donovan) e Ian (Kyle Riabko) beijam-se na série de tevê "90210"

2 comentários:

  1. Bom texto, mas discordo de que seja incorreto o entendimento de que a bíblia condene a homoafetividade, tanto que me é difícil aceitar que haja gays cristãos, como o é um dos autores do texto.

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  2. Eu havia lido o texto do Juiz/pastor no blog genizah, e realmente tinha me incomodado com os argumentos usados. Até os mais moderados, como os autores do tal blog evangelico, caem em equivocos bastante comuns, como a noção de que os gays querem dominar, serem uma classe superior e outras baboseiras. A resposta de vocês foi altamente esclarecedora..queria poder jogar ele na cara de uns e outros que andam falando tanta bobagem por aih. No mais, parabéns!!!

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