quinta-feira, 22 de setembro de 2011

A inumanidade do fundamentalismo



O que pode ser mais complexo do que o homem e suas relações? Não é uma resposta simples, muito menos imediata, não são físicas ou biológicas somente, nem ao menos se submete às questões estritamente químicas. O homem é capaz de se encantar, de se apaixonar pelo universo que o envolve; vislumbra o belo e interpreta o mesmo.

Desta evidência empírica o homem produz o humano: MOZART, BEETHOVEN, EINSTEIN, FREUD, mas produz também o seu contrário: HITLER, BUSH, BIN LADEN. Obviamente, que todos têm a capacidade de gestos grandiosos e mesquinhos, sem uma classificação de quem seja bom, plenamente bom, e mau, plenamente mau. Até mesmo, por se tratar de variantes que dependem das circunstâncias, e dos momentos: eis a persona[1]· Por este dado, muitos teóricos não definiram com precisão a humanidade devido a sua complexidade, e se limitaram a expô-la de forma genérica, como Heidegger: O homem é humano porque fala[2].

Destarte, a fala é a própria interpretação do sujeito da realidade, seu caráter é individual, pertence ao falante, que nela imprime sua cosmovisão: social, cultural e ideológica, no sentido de carregar cada pensamento particularizado de cada enunciador. Ao mesmo tempo em que, para dela se fazer uso, há que necessariamente relacioná-la a linguagem, ou um universo maior, mais abrangente do que língua e fala. Um conjunto de signos, podendo estes serem visual, gestual, comportamental, sonoro que mexe com a faculdade intelectual do falante para captar a mensagem. Portanto, a linguagem está associada ao pensamento, como diria Saussure.

E tal pensamento é a própria capacidade da irrupção do símbolo, da ressignificação da realidade imediata, de transformar a ausência em presença, representando essa ausência em todas as suas formas e gerando o objeto de pensamento, dando lugar à fala, na linguagem significante, à significada, criando às regras, as instituições, o social, a religião. Assim, o pensamento humano constrói o que não está, torna atual a consciência, e faz o presente, operando, desta feita sob signos mediadores.

Assim, a diversidade é condição humana, pois cada qual apropria do símbolo de maneira diferente do outro, sendo esta a qualidade do humano. É no inesperado que o homem constrói, na contingência é que se faz a necessidade das respostas, naquilo que já está estabelecido não há formulação, não há movimento, pois já foi pensando e já está predito. A única coisa capaz de surpreender é o diferente, o inesperado, e é nesta surpresa que o encantamento se estabelece, assim dizia o poeta Nazim Hikmet: “... A mais bela criatura ainda não nasceu; o mais belo dos mares é aquele que ainda não vimos.” O humano é a constante mudança, contudo há um paradoxo.

A mente humana se satisfaz no ideal do ego, o auto-referencial, que conduz o próprio como bom e o diferente como inferior. É o desejo do olhar materno, que contempla a criança- o menino rei- no espelho idêntico e necessário do homólogo, da identidade do perfeito e protegido, mas que torna sufocante o abraço e o mesmo olhar, se estes se perduram no tempo em demasia. O “Narciso” tem que ser superado o amor a igualdade, ao idêntico tem que se desabilitar para que o desejo de explorar venha ser integrado como movimento do ser, atração irresistível do inédito e desconhecido, da transgressão como propulsora.

Não é objetificar os desejos, ou aniquilar a identidade, muito menos o outro, mas é ter compreensão plena da identidade pessoal e das necessidades relacionais, e através da mesma compreensão se abrir ou se permitir o diferente, sem nele estigmatizar a ameaça do aniquilamento.

O individualismo exacerbado, essa postura de um olhar posseiro, e a satisfação pessoal dos desejos, sem o enfrentamento, ou o confronto da identidade pessoal construída, refletida e consciente faz do espaço em que o homem se estabelece em pleno espaço objeto, e não espaço integração, espaço-ambiente, essencial à própria condição do ente. O medo de se perder na multidão, pelo isolamento da própria personalidade (a solidão desolada), e o eclipse entre o ser a objetificação do ser dilaceram a construção da identidade plural. O indivíduo se ilha na multidão, não é nada para ninguém, e ninguém significa nada para si mesmo.

Um novo código é criado, a angustia se descarrega no corpo e na conduta, há a fragmentação do animus[3], o estado de anomia, o inumano, onde devido a falta da condição que humanize o ente surgem formas artificiais e substitutivas de sociabilidade: os fanatismos baseados em um particularismo identitário, as seitas e religiões, as tribos urbanas, as gangues, as quadrilhas sociopatas e delinquentes. Não é uma ligação horizontal, homem-humanidade, mas uma ligação vertical, homem-objeto onde as qualidades das hordas primitivas estabelecem o funcionamento da ‘tribo’.

Toda ação fundamentalista é ação inumana inscrita em lógicas e lealdades diferentes da pluralidade democrática, mas onde os membros conseguem um espaço de reconhecimento – a invencível necessidade narcisista de serem amados e reconhecidos. Neste aspecto, quando a inumanidade se apresenta com ar de bondade e inocência mais perverso é o seu mal, defendo critérios de ‘valores’, família, e salvação e moral não postulam outra coisa, senão a própria exclusão e aniquilamento do diferente; é como se uma frase estivesse inscrita, tatuada em suas testas: “primeiro, nós!”.

Tudo que o fundamentalismo postula, postula como se fosse humano, mas tudo que o fundamentalismo pratica, pratica em sua inumanidade hipócrita e eclipsada da própria condição demente em que se encontra. E desta forma a pergunta do teólogo Leonardo Boff é bem esclarecedora: Como pensar o ser humano depois de Auschwitz?  

[1] Persona é um termo dado para descrever as versões de si mesmo que todos os indivíduos possuem, é dado à função psíquica relacional voltada ao mundo externo, na busca de adaptação social. Comportamentos são selecionados de acordo com a impressão desejada que um indivíduo deseja criar quando interage com outra pessoa. Portanto, a persona apresentada por outras pessoas variam de acordo com o ambiente social que a pessoa estiver inserida, em particular a persona mostrada perante os outros se diferenciarão da persona que um indivíduo irá apresentar quando ele/ela estiver sozinho.
[2] HEIDEGGER. Martin (1889 – 1976); Stein, Ernildo. - O existencialista, Fenomologia. Filosofia. Porto Alegre. Ética 1967.
[3] Nesta acepção(animus/anima), responsável pela adaptação ao mundo interno

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