quarta-feira, 22 de maio de 2013

... E você? Tem preconceito contra passivos?



por João Marinho
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A questão do preconceito contra a passividade passa, a meu ver, por um machismo e misoginia que é ancestral.

Ele remete a épocas imemoriais – ou não tão imemoriais assim –, quando o ser humano mulher era considerado inferior, incapaz de gerir a si próprio e parcialmente ou totalmente dependente do homem. O sexo frágil, em oposição ao sexo forte.

Povos antigos, como os egípcios, costumavam estuprar os soldados perdedores nas diferentes guerras como forma de humilhá-los, "tratando-os como mulheres".

Essa forma de ver penetrou (sem trocadilhos rsrsrs) duas das culturas que mais influenciaram o pensamento ocidental.

Uma foi a Grécia Clássica. Excetuando-se casos como Esparta, a rigor, as mulheres gregas – sobretudo em Atenas – eram subjugadas e, assim, o papel típico atribuído a elas era igualmente típico de pessoas com menos poder ou mais vulneráveis.

Assim, era bastante sintomático que, na Grécia, ser penetrado era um papel justamente de "inferiores" ou "mais frágeis" – a mulher ou o efebo, jovem em processo de amadurecimento, que, uma vez tornado homem completo, precisava optar pela atividade e pelo papel de reprodutor.

Diferentes autores, incluindo Colin Spencer, se não me falhe a memória, concordam que a manutenção da passividade na vida adulta era malvista.

É possível perceber isso até em escritos filosóficos ou relatos que nos chegaram da época grega: o homem passivo adulto era alguém que "não cresceu", não amadureceu, não cumpriu seu papel de homem.

Embora eu já tenha lido relatos de que havia prostitutos passivos que faziam a vida atendendo homens ativos, eles, porém, sofriam os preconceitos sociais tal como as prostitutas hoje em dia no Ocidente – e a eles eram dirigidas expressões nada elogiosas.

Em Roma, a situação era ainda pior. Se, na Grécia, ainda havia o elemento do aprendizado – fenômeno que surgiu até no Japão dos samurais –, em Roma, tudo se resumia ao poder, ainda que, em média, as mulheres romanas fossem mais livres.

O homem romano, o pater, dono da casa, podia tomar e usar os corpos de todos em seu domínio, mas ser penetrado era motivo de desonra. Esse papel era reservado aos dominados, os mais jovens, as mulheres, os escravos da casa.

Já li teóricos que consideram que essa forma romana de pensar influenciou a cultura de todos os lugares dominados pelos latinos, daí ser a razão que, da América Latina, fruto da colonização lusoespanhola, ao Mundo Árabe, ser passivo, ser penetrado é ser inferior, menos homem, dominado... Recusar a masculinidade, com todo o simbolismo de poderio e força que ela carrega.

Daí, surge o preconceito contra os passivos e o próprio autopreconceito. Tenho uma anedota que sempre se mostra verdadeira. Se o cara é ativo, ele declara isso com certo orgulho. Se ele diz "não sei", "depende...", "entre quatro paredes, vale tudo"... Ele dá rs.

É difícil encontrar passivos como eu, que o são com orgulho e não têm medo de dizê-lo, embora eu deva admitir que isso também foi um aprendizado.

No começo da minha vida gay, aculturado ao machismo brasileiro, também tive dificuldades de aceitar e publicizar minha própria passividade.

Lembro-me de ter me estressado com meu ex-marido quando ele me contou que, logo que nos conhecemos, percebeu que eu era passivo.

Foi um insulto, algo que imediatamente relacionei com a efeminação, até ele dizer "por que você está bravo? Se eu não tivesse percebido, não tinha cantado você". Os questionamentos e a experiência de vida me fizeram deixar de considerar assumir a passividade um problema e a efeminação também.

Existe, porém, uma outra questão que acaba sendo tão deletéria quanto este preconceito a que me referi e que, infelizmente, tem sido muito comum entre militantes gays. Eu costumo chamar de "ditadura da versatilidade". O problema é que ela parte de um diagnóstico correto para propor um remédio incorreto.

O diagnóstico correto diz respeito a avaliar de forma certeira a dicotomia de valoração ativo x passivo, ou do bofe x bicha, um sendo "superior" ao outro, como fruto da heteronormatividade e do machismo/misoginia.

O problema está na solução apresentada.

Em vez de propor um questionamento dessa valoração diferenciada, em que penetrar "é melhor" do que ser penetrado, os militantes propõem como saída a versatilidade total e irrestrita – e passam a considerar, em artigos e discursos, os "exclusivos" (ativos e passivos restritos) como gays "capengas", necessariamente "heteronormativos", "preconceituosos", "reprodutores do discurso machista".

O discurso entra nas camadas mais populares dos gays e eu, como passivo, sou obrigado a escutar que "sou muito restrito" e faço "sexo pela metade".

Pobres passivos – do lado dos machistas, são inferiores. E do lado dos militantes, são "involuídos". Me pergunto: em que isso ajuda?

Esses militantes não têm se dado conta de que a opção pela atividade ou passividade comporta um elemento de prazer – que pode, até mesmo, ter origem nos papéis tradicionais em certos casos, por que não?

Limites na cama, todos temos. Eu, como passivo, faço uma série de práticas que muitos versáteis jamais pensariam em fazer por considerarem extremas. Então, a questão é de gosto – e se a pessoa se sente realizada na dicotomia "bofe x bicha" (não é meu caso: sem problemas em fica com um feminino, desde que ele seja ativo rsrs), por que isso não deveria ser igualmente respeitado?

O que se deve questionar é a questão da valoração, que eu tangenciei mais atrás. É empoderar os passivos, para que não admitam ser tratados como inferiores nem se verem como inferiores por extraírem dessa prática o seu prazer pessoal – e que nem por ser passivo isso significa abrir mãos de seus direitos e respeito como cidadão, como homem, como gay, como adulto, como ser humano. Mesmo naqueles que adotam a dicotomia "bofe x bicha", a bicha precisa estar ciente de que é uma bee belíssima e poderosa – e tudo se resolve.

Se a passividade masculina sempre esteve ligada ao inferior, ao "menos homem", ao ser "como mulher", é importante que, à medida que combatemos a heteronormatividade e advoguemos a libertação feminina, também libertemos a passividade como uma forma legítima de prazer que, por sinal, em nada identifica características psicológicas de seus praticantes.

Infelizmente, porém, nem todas as mulheres estão a par disso – e "zoam" os homens passivos por serem passivos sem se darem conta de que a origem desse preconceito é a própria cultura patriarcal de inferiorizar o feminino e a tudo que a ele se atribui como fútil, fraco, menos importante.

* Passivo assumido, que não vai mudar, já experimentou ser ativo, não gosta e não vê sentido em "virar versátil" só para agradar pessoas que não estão na minha cama e nem me proporcionam prazer, hehehe.

Um artigo de Gésner Braga sobre a questão: http://www.institutoadediversidade.com.br/comportamento/por-que-a-passividade-e-tomada-como-uma-condicao-humilhante

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