"VIBRA, CAPETA", OU QUESTIONAMENTOS SOBRE A POLÍTICA FUNDAMENTALISTA EVANGÉLICA EM BRASÍLIA
por João Marinho
Demorei alguns dias para me posicionar a respeito da
manifestação antigay e evangélica realizada em Brasília na semana passada, que,
segundo a PM local, reuniu 40 mil pessoas.
As manifestações que tenho lido oscilaram entre um excesso de
confiança por parte dos evangélicos malafaístas – muitos dos quais utilizaram,
em fóruns dominados pelo fundamentalismo, o jargão de Silas: "Chora, capeta!" –
e o excesso de desprezo por parte de muitos opositores (e, para deixar claro, eu
sou um opositor), que deram à manifestação o status de
"fracasso".
Optando pelo caminho do meio, como ensina Aristóteles, não
deixa de ser assustador que 40 mil pessoas tenham se unido em torno de uma pauta
política negativa, no sentido de rejeitar a uma parcela da população a
consecução de direitos iguais, como determina a Constituição
republicana.
Curioso é que esses mesmos direitos são desfrutados pelos
manifestantes e o eram por todos os demais até agora, desde que entre homem e
mulher, inclusive por representantes a quem os evangélicos também se opõem, como
os ateus e os membros de qualquer outra religião.
Entre essas, a católica. Afinal, a despeito da singular
participação de Jair Bolsonaro supostamente representando esse segmento - ele,
que é recasado e, portanto, vai contra a doutrina católica antidivórcio! -, a
verdade é que qualquer ex-evangélico, como este que vos escreve, ou evangélico
sabe, no fundo, que tais igrejas dedicam à Igreja Católica adjetivos bem pouco
abonadores, que variam de idólatra a apóstata.
É assustador e preocupante. Definitivamente, não foi um
fracasso – mas não é de aterrorizar. Os evangélicos presentes ao evento
superestimaram seu alcance. Embora 40 mil seja um público relevante, não deixa
de ser uma excelente notícia que a manifestação tenha ocorrido com 60% menos
público que o anunciado por Malafaia, que prometia 100 mil. Os mais empolgados
falavam até em 300 mil.
Também interessante notar as ausências, politicamente bastante
representativas (http://ciatriangulorosa.info/?p=426#comment-750),
o que demonstra que a influência de Malafaia não é, a rigor, tão grande quanto
ele alardeia, ainda que eu não compartilhe de todo o otimismo do link há pouco
discriminado.
Malafaia também alardeou que a manifestação ocorreu sem uso de
dinheiro público – "como a Parada Gay" –, mas, além de ser necessário informar
de que o poder público também apoia manifestações como a Marcha para Jesus, é
incontestável que o prestígio dos cantores gospel frente àquele público e o fato
de ter sido parte dos fiéis levada com ônibus e lanches pagos por igrejas
demonstra um "aliciamento" relevante: a mesma Associação da Parada de São Paulo,
tão atacada pelo pastor assembleiano, não promoveu semelhantes "incentivos" para
reunir 600 mil apoiadores na Avenida Paulista.
Uma demonstração do alcance se deu na eleição de Luís Roberto
Barroso, ao STF, no mesmo dia. Foi um dia tumultuado, em que o infame Estatuto
do Nascituro, apoiado pelos religiosos fundamentalistas, avançou, mas que
Barroso, em quem Malafaia prometeu "descer a ripa", ganhou seu assento com
esmagadora maioria no Senado, após ser sabatinado por cerca de 7 horas e
defender publicamente suas posições nos julgamentos do Supremo sobre fetos
anencéfalos e união homoafetiva.
Se por "capeta", os evangélicos malafaístas entendem a defesa
dos direitos humanos e da diversidade brasileira – inclusive sexual e ideológica
–, ele, o capeta, definitivamente não estava chorando, mas se mobilizando na
garantia de um assento no STF a um ministro antenado com o mais moderno
entendimento sobre garantia de direitos fundamentais.
Dito isso, o que depreender efetivamente da manifestação? Ora,
excetuando-se as famílias homoafetivas, a união entre pessoas de mesmo sexo e o
casamento gay não geram direitos ou deveres que interfiram nas famílias de quem
não é homoafetivo e não tem parceiro do mesmo sexo, como é o caso dos próprios
evangélicos.
Portanto, rigorosamente falando, considero totalmente injusta
e carente de fundamento a mobilização evangélica – mas, se formos falar de
pesquisas, a população brasileira encontra-se dividida sobre a questão, mas com
vantagem para o reconhecimento da união homoafetiva e/ou casamento gay (http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/noticia/2013/05/37-dos-brasileiros-nao-aceitariam-ter-um-filho-homossexual-diz-pesquisa.html
e http://www.meionorte.com/noticias/geral/pesquisa-maioria-dos-brasileiros-ja-e-a-favor-do-casamento-gay-176606.html).
Em suma, certamente, é arriscado falar que esses 40 mil respondam pelos 200
milhões de brasileiros – e certeiro observar que tentam impor regras a quem não
compartilha de seus valores.
Pior ainda é observar em como tantos milhares de pessoas se
colocam voluntariamente como massa de manobra. Lembremos do Kit Escola Sem
Homofobia, que tinha como objetivo combater o bullying
homofóbico.
Desde a instauração do programa Brasil Sem Homofobia, o
governo já dispõe de estatísticas que denotam ser esse um problema enfrentado
nas escolas, que prejudica o desempenho de uma gama de alunos (sejam LGBTs ou
não: basta apenas ser "apontado" como um), aumenta a evasão escolar, as taxas de
suicídio entre jovens e adolescentes LGBTs e a vulnerabilidade a DSTs e
morbidade (há estatísticas nacionais e internacionais sobre isso) em relação aos
alunos autodeclarados héteros.
Nesse sentido, como bem pontuou o agora ministro Barroso, é
preciso considerar que as maiorias podem muito, mas não podem tudo. A
resistência de uma parte da população, mesmo que majoritária, ao tema da
homossexualidade como tabu não necessariamente deve se sobrepor ao interesse dos
jovens LGBTs, uma vez que é questionável que a manutenção de uma ideologia
conservadora cristã se sobreponha à questão do suicídio, aumento da morbidade,
mortalidade e evasão escolar: todas essas outras esferas, constitucionalmente,
inclusive, mais importantes e direitos fundamentais das
pessoas.
O Kit, que, por sinal, não era direcionado a crianças e
adolescentes - mas aos professores - e teve o aval da Unesco, infelizmente
sofreu uma campanha de desinformação por parte da bancada evangélica. Foi
cancelado. No entanto, pior ainda, não por causa do "interesse da maioria da
população" ou "por causa dos valores cristãos" evangélicos, mas numa manobra
governista para atender à bancada religiosa com vistas a manter um ministro,
Antonio Palocci, no cargo diante da ameaça dessa mesma bancada de investigar
seus supostos ilícitos.
A realidade, portanto, é bem mais suja - participando dessa
sujeira a bancada religiosa evangélica e fundamentalista. É muito entristecedor
que, ainda que não representativas da maioria (como se vê em estatísticas
acima), 40 mil pessoas se disponham a ir a Brasília contra direitos que não lhes
dizem respeito – e aos que supostamente diriam, como o PLC 122, sejam também
alvos de desinformação, especialmente com a redação atual do
projeto.
Graças à agenda eleitoreira, também o governo de Dilma tem se
tornado refém desse tipo de interesse escuso. E, enquanto isso, o Brasil
retrocede no combate ao HIV/Aids, na redução dos crimes homofóbicos, nos
direitos fundamentais da cidadania, na evasão escolar e no suicídio de jovens e
adolescentes LGBTs. Enquanto os evangélicos não perdem e nunca perderam um
direito, comprando tevês e rádios e cinemas e, ainda assim, sob hipnose
pastoral, se sentindo "perseguidos".
Em suma, muita pouca realidade, muita massificação, muita
enganação e muita manipulação envolvendo um jogo político sujo, erguido sobre
corpos de homens, mulheres, jovens, crianças e adolescentes
inocentes.
Tais manifestações malafaístas só terão efetivo sentido
cristão e religioso quando e se os mesmos evangélicos fundamentalistas se
levantarem contra os casamentos de membros de outras religiões (que criam seus
filhos na idolatria e na apostasia, segundo eles, o que é antibíblico), contra
famílias monoparentais (o que também é desaconselhado pela doutrina), contra a
Fertilização In Vitro (que é antinatural) e a favor da proibição do divórcio tal
como na lei civil (que também é antibíblico). O fato de não o fazerem diz muito
a respeito do que realmente está por trás: o que tem muito menos a ver com a
"defesa da família tradicional" do que eles dizem ter.
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