HOMOFOBIA,
TRANSFOBIA, MACHISMO E MISOGINIA: POR QUE INTERNALIZAMOS (E EXTERNALIZAMOS)
TUDO ISSO?
por João Marinho
Tenho me mantido quieto até agora sobre
certos protestos que acompanhei no Facebook envolvendo Marco Feliciano,
Ronaldo “Fenômeno” e Mara “Maravilha”, mas penso que certas reflexões são, no
momento, pertinentes.
Em primeiro lugar, devo dizer que sou
plenamente a favor de manifestações críticas a esses personagens.
Marco Feliciano é um pulha, incapaz de
tecer qualquer comentário relevante sobre o momento histórico que vive o
Brasil, incapaz de apresentar qualquer projeto relevante – mas é o primeiro da
fila quando se trata de “fiscalizar” os ânus alheios.
Ronaldo “Fenômeno” foi muito infeliz ao
dizer, no momento em que a população – correta ou inadequadamente – pedia por
melhoria nos serviços públicos, que Copa não se faz com hospital. Irmanou-se a
Pelé, que quis tornar a seleção mais importante que a coisa pública. Seleção é
legal de assistir, mas não resolve saúde, educação, transporte. Nem vida.
Mara “Maravilha”, tanto pior. Ao
defender Feliciano e chamar gays de “aberração”, une-se ao que de mais
retrógrado, fundamentalista e moralmente condenável existe na política, na
sociedade e na religião brasileiras.
Merecem todos serem criticados... Mas o problema está NA FORMA como parte
dessas críticas têm surgido.
Para Feliciano, tem sido comum dizer
que ele é “gay enrustido”, “bicha crente”, “passiva não assumida”, que “precisa
de um pau” e outras coisas desse naipe.
Para Ronaldo “Fenômeno”, vi fotos “respondendo”
a ele que, se Copa não se faz com hospital, orgia não se faz com travestis.
Mara “Maravilha” tem sido crucificada
por ter posado nua e acusada de “hipócrita”, “sirigaita”, “velha” e “decadente”.
Aqui, subentende-se que gays não são “aberração”, mas ela, que teve a pachorra
de posar nua!
Ora, o que essas críticas dizem a respeito de nós mesmos, externadas,
inclusive, por LGBTs e por mulheres?
A meu ver, nada de bom.
Não sei de onde vem a ideia de que
homofóbicos são “gays enrustidos”.
Antes que me digam que existem estudos
apontando para isso, devo dizer que eu conheço esses estudos e sei, também, ao
contrário da maioria, que eles se remetem a certos tipos de homofobia e a
certas categorias populacionais. Seus próprios autores alertam que não podem
ser generalizados para outros grupos ou populações em termos amplos.
É de se pensar que, de fato, muitos
homofóbicos, especialmente os mais agressivos, são, na verdade, pessoas com
profundos problemas sexuais e que, tal como a pessoa maníaca por limpeza,
tentam “reprimir” desejos do que consideram “sujeira” apelando para o extremo
oposto.
No entanto, a homofobia não possui apenas essa face, mais agressiva.
No Ocidente e no Oriente Médio, ela é
fortemente calcada em uma cultura judaico-cristã e islâmica, que, inclusive,
espalhou-se para outros povos.
A extrema dicotomia artificialmente
construída para homens e mulheres – muito superior a qualquer fundamentação
biológica possível de analisar – resvala na tese de que o gay, a lésbica, o/a
bi é um/a “desviado/a”, que não contempla seu papel dado pela “natureza”. Pior
ainda para travestis e transexuais. Argumentos errôneos, sabendo-se hoje que,
mesmo em outras espécies, existe comportamento homoerótico e transexual.
Culturalmente, porém, isso ainda contém
um forte apelo popular – e resultam daí as milhares de faces da homofobia e de
suas derivadas. Da mãe e do pai que se perguntam “onde foi que erraram” ao fato
de “viado” (ou “veado”) ser um xingamento comum, no que é possível perceber a
herança, difusa e obscena, de considerar o “homem que dá a bunda” como inferior
ao “macho”.
O que me constrange nas tirinhas contra
Feliciano, publicadas INCLUSIVE POR GAYS, é as pessoas não perceberem toda essa
herança verdadeiramente maldita e reforçarem-na.
Sim, porque, não importa quanta raiva
justificada você tenha de Feliciano, ao dizer que ele é “gay enrustido”, “bicha
crente”, “passiva não assumida”, que “precisa de um pau”, você está, sim,
fazendo o mesmíssimo uso homofóbico de considerar a homossexualidade de alguém,
real ou suposta, como índice de inferioridade. Como vai exigir respeito depois
quando, frente a um preconceituoso, for você o alvo de idêntica estratégia?
É homofobia internalizada, pura e
simplesmente.
O que você pensaria, por exemplo, se
visse um negro criticando outro partindo justamente da cor da pele daquele
outro, porque “se não fez na entrada, faz na saída”? Ou um judeu criticando
outro partindo justamente do fato de o segundo ter, vejam só, mãe judia, porque
judeus, “óbvio”, são “mãos de vaca e interesseiros”?!
Ridículo, não é?
Então, por que raios criticar Feliciano
partindo de uma homossexualidade “suspeita” porque, “claro”, só “bichas
malresolvidas” perseguem “as demais”?
Não sei vocês, mas eu não nasci “fora do armário” – e não me recordo, da época
em que me escondia entre mofos e gavetas, de, por isso, ter me tornado um
Feliciano da vida...
Ora, se Feliciano é homofóbico – e ele o é –, é isso que deve ser criticado, e
não sua suposta sexualidade. Mesmo porque, na sociedade homofóbica e
heteronormativa em que vivemos, não é preciso ser “enrustido” para ter
preconceito. Basta seguir a maré.
O caso de Ronaldo “Fenômeno” já flerta
com a transfobia. Não dá para acreditar na história de que ele “se confundiu”
com travestis e mulheres. Quem vive em grandes cidades, como São Paulo e Rio,
metrópoles que conheço bem – e foi no Rio onde se desenvolveu o imbróglio –,
sabe perfeitamente que garotas, garotos e travestis de programa, até por
necessidade de público-alvo, não dividem o mesmo espaço urbano. Existe uma
divisão geográfica, ainda que informal.
No entanto, se Ronaldo se deixa levar por uma transfobia cultural e prefere
passar pelo “carão” de “confuso” em vez de assumir que realmente tinha
interesse nas travestis, é esse aspecto transfóbico que deve ser criticado.
O que não pode é explorar uma mensagem que coloca as travestis, já tão
marginalizadas, como um anátema, portadoras de algum aspecto “nojento”, que as
impediria de serem candidatas a momentos de prazer com outrem, ainda que num
bacanal.
As críticas direcionadas a Mara “Maravilha”
já flertam com o machismo e a misoginia. Sim, Mara foi infeliz até a medula em
sua declaração e merece toda a nossa revolta por isso.
No entanto, que fique claro. O que deve
ser criticado em Mara é sua homofobia e seu fundamentalismo religioso da pior
espécie. Não é o fato de ter posado nua, de ser “sirigaita”, de ter “dado mais
que chuchu na serra”, de estar “velha”.
Mara ou não, o corpo da mulher é da mulher – e o uso que ela faz dele é
de foro personalíssimo. Até quando flertaremos com a ideia de que o número de
parceiros sexuais ou a exposição do corpo e da nudez determinam o grau de empatia,
moralidade, respeitabilidade de alguém?
Há mulheres prostitutas, e muito felizes, como na censurada campanha do
Ministério da Saúde, que dão um banho em termos de respeito ao próximo frente à
beata virgem mais intransigente. Ademais, idade, que eu saiba, não é defeito.
Ao criticar Mara por ter posado nua, flerta-se com a pior espécie de machismo.
Aquele que quer ter controle sobre o corpo da mulher – e que, na
impossibilidade de tê-lo, faz do corpo da mulher e do uso soberano que a mesma
lhe dá razão para agredi-la socialmente.
Então, você gay, você lésbica, você mulher, você travesti, trans, bissexual...
E você hétero consciente... PAREM! Parem de fazer uso dessa cultura triste e
brasileira e saibam criticar sem utilizar os mesmos argumentos do que aqueles
imbecis que, vira e mexe, atacam você.